Investigação

Americanas: ex-diretores listaram ‘30 ideias’ para esconder rombo da nova gestão

Ao saber que Americanas teria novo comando, executivos sugeriram artifícios como imputar perdas a ataque cibernético. "Tem que ser algo dramático", diz texto

Print de mensagem trocada entre diretores da Americanas (Foto: Reprodução)
Print de mensagem trocada entre diretores da Americanas (Foto: Reprodução)

(O Globo) Em agosto de 2022, quando os controladores da Americanas anunciaram a troca no comando da varejista pela primeira vez em duas décadas, começou uma verdadeira força-tarefa da então diretoria da companhia com “um plano de ação para lidar com a fraude na transição”.

Foram listados, de acordo com o parecer do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF), 30 iniciativas com estratégias que incluíam, entre outras medidas, lançar aos poucos baixas contábeis da fraude para diminuir o tamanho do desfalque a ser comunicado no fim do ano para a nova gestão.

Segundo o MPF, Miguel Gutierrez, então CEO da Americanas por 20 anos, “estava sempre sendo cientificado”.

A mudança no comando da varejista havia sido anunciada pelo próprio Gutierrez em agosto de 2022. Com a transição, “surgiu a grande preocupação de como lidar com a fraude bilionária que vinha sendo praticada há muitos anos”, diz o MPF. Em uma das reuniões, o colaborador Marcelo Nunes – um dos ex-funcionários que fez a delação premiada – fez uma reunião com Gutierrez, Anna Saicalli, Marcio Cruz e Timotheo Barros alertando sobre as preocupações com a “impossibilidade de esconder a fraude do novo CEO”.

Foi quando Barros e Fabio Abrate, segundo o MPF, determinaran que Flávia Carneiro – que também fez a delação premiada – e Marcelo Nunes criassem um power point com o tamanho real do rombo com as fraudes contábeis, que já duravam ao menos uma década, de acordo com as investigações. Carlos Padilha, ex-diretor Operacional da B2W e ex-diretor de Relações com Investidores de Lojas Americanas, também teve participação na elaboração do planejamento, diz o MPF.

O documento, chamado “Planilha Histórico Financeiro”, resumia tudo que havia sido feito, com a soma das Verba de Propaganda Cooperadas (VPC) falsas, os montantes adicionais do GMV (volume bruto de mercadoria) do marketplace, os custos financeiros do risco sacado não lançados nos resultados (ou seja, os juros não declarados da dívida da empresa com empréstimos a fornecedores), o saldo do risco sacado, os números fraudulentos nas operações de cartão de crédito e as antecipações financeiras de VPC.

No dia 31 de agosto de 2022, a então diretoria já tinha o tamanho exato do rombo: no primeiro semestre daquele ano, o total já atingia mais de R$ 20 bilhões. Além disso, o custo financeiro da dívida atingiu R$ 1,443 bilhão. Tudo “omitido do mercado”, apontam as investigações.

Dessa forma, foram apresentadas, segundo mensagens obtidas pelos celulares dos funcionários e confrontados com materiais apreendidos na própria Americanas, diferentes alternativas para “escamotear o rombo financeiro”, nas palavras do MPF.

Em uma das mensagens, Barros diz “Precisamos de um plano para apresentar para o Miguel”. Carlos Padilha responde “Listamos 30 ideias”. Em outro trecho da conversa, Barros sugere: “Na técnica pense em como podemos alocar mais coisas no cyber” e “Além disso ajude a pensar/escrever uma narrativa para justificar os ajustes na técnica”. “Vamos engordar a lista do tributários. Quanto mais problemas, melhor. Visão sempre do pior cenário e todas as possibilidades”. “Tem que ser algo dramático”, orienta Barros.

Em maio de 2022, a varejista disse que um ataque hacker sofrido em fevereiro resultou em uma perda de R$ 923 milhões em vendas.

Depois de uma reunião, Barros comemora: “Mostrei para o MG a possibilidade que baixa de intangivel com contrapartida no fornecedor. Ele achou show. Se conseguirmos, fazer isso seria ótimo”, segundo uma das mensagens trocadas por WhatsApp. MG são as iniciais de Miguel Gutierrez.

Assim, na lista de iniciativas reunidas pelo MPF, a estratégia incluía incrementar o saldo do estoque para posteriormente efetuar baixa relevante de estoques por perda ou venda abaixo do custo original; baixar os ativos imobilizados e intangíveis com justificativa técnica de impairment; imputar perdas como resultado do ataque cibernético sofrido pela B2W; ou incrementar as provisões para perdas ou para contingências.

“Todas essas estratégias teriam um objetivo, qual seja, criar artifícios para zerar contabilmente o rombo gerado pelas Cartas VPC falsas”, avaliou o MPF. Em um primeiro momento, a meta era levantar R$ 15 bilhões em perdas contábeis falsas. Flávia Carneiro, então, elaborou um arquivo nomeado “revisitação efeitos IFRS”, no qual incluiu, ao lado de cada artifício, os riscos e a necessidade de documentação de suporte para que os ajustes fraudulentos fossem realizados.

Então, quatro meses depois, a versão final foi apresentada para Sérgio Rial, que havia sido nomeado CEO da companhia. E em 11 janeiro de 2023, a Americanas fez um comunicado ao mercado “dando início ao processo de forte depreciação das ações da companhia”.

De acordo com fontes, a troca de gestão na companhia foi um pedido do Conselho de Administração após a fusão das operações das lojas físicas, chamada de Lojas Americanas, com o braço de comércio eletrônico, com a então B2W, criando a Americanas S.A. Segundo essas fontes, Gutierrez era contra a mudança na gestão, o que desgastou sua relação com os controladores.