JUSTIÇA

99 é condenada a pagar R$ 600 mil à família de motorista que morreu de Covid

A 99 foi condenada pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Minas Gerais a pagar uma indenização…

A 99 foi condenada pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Minas Gerais a pagar uma indenização de R$ 600 mil à família de um motorista de aplicativo de Belo Horizonte, que no ano passado contraiu Covid-19 e, um mês depois, morreu. Cabe recurso à decisão.

Além da indenização, a juíza Silene Cunha de Oliveira condenou o aplicativo a pagar uma pensão mensal de R$ 1 mil a cada uma das duas filhas de Andrei César da Silva Euler, que hoje têm 9 e 2 anos, e à mulher, Patrícia (nome fictício), de 38 anos. A pensão de Patrícia deve ser concedida até ela completar 76 anos e a das filhas, até os 24 anos.

Procurada, a 99 disse que “não comenta processos ainda em andamento na Justiça”.

“Meu marido trabalhava de 10 a 12 horas por dia como motorista, ganhava cerca de R$ 1.500 por mês, era a principal renda na nossa casa. Deixou de ficar com a gente em muitas comemorações, como Natal e Ano Novo, para trabalhar. Na pandemia, levou muita gente para hospital e posto de saúde”, disse a mulher do motorista.

Segundo ela, o marido tinha uma barbearia, mas o negócio não deu certo e ela fechou pouco antes da pandemia. Daí começou a trabalhar como motorista de aplicativo, na categoria 99 POP, de preços mais baixos. No domingo, dia 19, completa um ano do seu falecimento.

“Ele descobriu que tinha Covid no dia 18 de maio e foi internado já no dia 21. Ele trabalhava direto, o período que não estava rodando, estava em casa. Mas não tinha nenhum suporte em relação à Covid. A 99 não me ofereceu nenhum suporte depois da morte dele”, afirma Patrícia.

“Quando ele morreu, minha filha caçula tinha 11 meses. Eu e a mais velha ainda estamos em tratamento psicológico para ajudar a enfrentar a dor da saudade e as consequências do luto. A mais velha começou a apresentar dificuldades na escola, não dorme sozinha, não está conseguindo lidar com a perda”, diz ela, que esteve casada durante 11 anos com Andrei.

A advogada Fabíola Marques, sócia da Abud Marques Sociedade de Advogadas e professora de direito do trabalho da PUC-SP, diz que o valor é alto para uma causa trabalhista. “Mas dificilmente a causa deve ser reconhecida por instâncias superiores como o TST [Tribunal Superior do Trabalho] e o STF [Superior Tribunal Federal]”, diz ela, por conta da dificuldade de reconhecimento de vínculo empregatício.

A especialista explica que, para que uma relação trabalhista seja reconhecida, ela precisa apresentar quatro atributos: pessoalidade (só aquela pessoa faz o trabalho, o que vale para os motoristas de aplicativo, que precisa estar registrado na plataforma); habitualidade (prestação do serviço de maneira contínua); onerosidade (ser remunerado pela prestação do serviço); e subordinação (responder a um superior ou depender da empresa para o trabalho).

“A questão da subordinação é a mais complexa, porque é difícil saber até que ponto o trabalhador está subordinado ao aplicativo: ele tem o poder de não aceitar uma corrida e deixar de trabalhar quando quer”, diz. “Por outro lado, ele precisa da plataforma para chegar até os clientes. Sob este ponto de vista, existe subordinação.”

Para a professora da PUC-SP, o mais razoável é que os trabalhadores de aplicativos sejam regidos por uma legislação específica, mais flexível que a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), mas que também garanta direitos mínimos, como a Previdência. “Existem várias propostas legislativas em discussão mas, até uma delas se tornar lei, o que vai ser discutido é o vínculo trabalhista, conforme o artigo 3º da CLT.”

Já em relação à indenização por exposição ao risco de contrair Covid, a especialista afirma que a lei brasileira criou jurisprudência a respeito, considerando que a Covid é uma doença do trabalho e que a empresa deve se responsabilizar em garantir a segurança do seu funcionário.

“Com um grande volume de pessoas entrando e saindo dos carros, os aplicativos teriam que oferecer algum tipo de esterilização do veículo ou, ao menos, equipamentos de proteção aos motoristas, o que não acontece”, afirma. “A empresa de aplicativos fica com a melhor parte do negócio: não investe nos veículos, não arca com os custos de manutenção, não corre os riscos da operação, mas recebe a maior parte dos ganhos.”

O presidente da Associação dos Motoristas de Aplicativo de São Paulo, Eduardo Lima, acha difícil que a 99 não consiga reverter a sentença. “Mas torço para que a família receba uma indenização, até porque um pai deixou mulher e filhas sem sustento”, diz ele, que já observou “dezenas” de casos de motoristas de aplicativos mortos por Covid-19. “Mas este é o primeiro caso em que eu vejo a família buscar uma indenização.”