Acadêmicas negras têm produtividade mais impactada durante a pandemia, aponta pesquisa
A doutoranda em física Carleane Patrícia da Silva Reis, 29, precisa fazer malabarismo para dar…
A doutoranda em física Carleane Patrícia da Silva Reis, 29, precisa fazer malabarismo para dar conta da pesquisa, pagar as contas em dia, manter a saúde mental e a rotina dentro de casa. A pandemia do coronavírus chegou quando ela estava no meio da produção de seu doutorado e desde então não tem sido fácil conciliar todas as demandas.
Como outras mulheres negras na academia, ela é a que tem a maior renda da família. O valor que recebe da bolsa de doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina ajuda a manter ela, a mãe e o irmão.
No meio da pandemia, sua mãe teve redução de jornada e salário e o irmão ficou desempregado. “Essa bolsa é dividida entre o meu aluguel, o financiamento do apartamento da minha mãe e todas as despesas. É mágica, tem dia que estou fazendo malabarismo”, diz.
Quando a pandemia parou tudo ela também se viu sem transporte público para se deslocar até a universidade. Para realizar a pesquisa, ela precisava usar o laboratório do campus. Além do mais, sem internet e computador em casa era impossível estudar a distância.
Outros problemas com que ela se deparou foram com o atraso na entrega do material para a pesquisa, como os reagentes de que precisa para as experiências, e a quebra de um equipamento no laboratório que não foi consertado porque não tinha como um técnico se deslocar até a universidade.
Segundo ela, todas essas questões impactam no resultado final da sua produção bibliográfica. “Essas pequenas complicações fazem com que você tenha menos tempo para se dedicar à pesquisa, fora a saúde mental porque você fica o tempo inteiro [pensando]: ‘nossa o que vai acontecer? E se a minha mãe perder o emprego eu vou ter que sair da universidade para procurar um emprego, porque a bolsa não vai cobrir todos os gastos’ .”
De acordo com a doutoranda, essas dificuldades são comuns entre mulheres negras cientistas. “Porque quando a gente observa quem mais recebe auxílio na universidade é a população negra, então, quem é mais impactada geralmente é essa população, que é a pessoa que tem a maior renda na casa.”
A pandemia também trouxe desafios e incertezas para Andreza da Silveira Jorge, 33, que ingressou no doutorado em artes da cena, na UFRJ, no ano passado.
Mãe de uma menina de seis anos, quando a pandemia começou ela trabalhava na organização Redes da Maré e dava aulas na UFRJ, mas precisou pedir demissão do primeiro porque o trabalho exigia ser presencial. Com a filha sem ir para a escola, ela preferiu ficar em casa e se dedicar à pesquisa.
“Só que imagina conseguir produzir nesse contexto de incerteza de grana. A pesquisa parte desse lugar de imersão de tempo da reflexão, do estudo, e você está ali presa em um ambiente e muitas vezes sem recurso necessário. Eu sou do Complexo da Maré e a internet é muito ruim, então eu não tinha estrutura para fazer a minha produção intelectual.”
Segundo ela, quando se faz o recorte de mulheres negras, que compõem majoritariamente às classes populares e trabalhadoras, “vamos ter esse lugar do medo, da insegurança alimentar, do pouco apoio e [falta de] recurso para a produção intelectual”, diz.
Para dar conta do cuidado com a filha e o doutorado, no ano passado e no começo deste, ela fez um acordo com a mãe. De segunda a quinta, em um horário a tarde, a filha ficava na casa da avó. Pela manhã, ela organizava as coisas da casa e usava o período da tarde para fazer a pesquisa.
“Nesse caso, sou uma exceção porque minha mãe está aposentada, mas [ela] também tem as limitações dela”, diz.
Depois, Andreza foi lidando com a filha dentro de casa mesmo. Combinava para ela ficar fazendo alguma coisa sozinha enquanto se dedicava aos estudos.
Neste ano, a rotina mudou um pouco, ela foi aprovada para fazer um outro doutorado nos EUA. Em julho, se mudou para a Virgínia com a filha e o companheiro e, quando conversou com a reportagem, estava se adaptando à nova rotina.
Estudo publicado no periódico Frontiers in Physiology, feito pela pesquisadora Fernanda Staniscuaski e outros colegas, mostrou que mulheres negras, com ou sem filhos, e mães brancas são os grupos que encontram mais barreiras na academia.
Durante a pandemia do coronavírus, raça e maternidade impulsionam o desequilíbrio de produtividade na ciência, segundo a pesquisa.
De acordo com o estudo, uma possível explicação para a disparidade de gênero é porque as mulheres, principalmente as negras, têm menos apoio na rede social do que os homens, o que pode influenciar negativamente sua trajetória de carreira.
“Não encontramos [na pesquisa] diferença entre negras e brancas na dedicação às tarefas de cuidado com filhos, idosos e casa. Achamos que [o problema] é a questão da rede de colaboração. Na pandemia, essa questão é ainda mais crucial”, diz Fernanda Staniscuaski.
As mulheres negras também experimentam isolamento e uma sensação de “não pertencer” à academia, segundo o estudo. No Brasil, elas representam, por exemplo, apenas 3% dos orientadores de doutorado.
“Há pouquíssimas mulheres negras dentro da academia e isso já é um problema para gerar grupos que sejam receptivos à diversidade”, diz Fernanda Staniscuaski.
Segundo o estudo, existem muitas razões para esta sub-representação na ciência, incluindo racismo sistêmico, falta de representação e estereótipos baseados em raça.
“Mulheres negras evitam carreiras acadêmicas por completo ou saem da academia antes das decisões de posse porque experimentam isolamento social, preconceito e hostilidade”, diz a pesquisa.
A doutoranda em física Carleane diz participar de um grupo de estudantes negras e viu muitas delas deixarem a universidade ou trancarem o curso porque precisavam trabalhar e ajudar na renda em casa, depois que um parente perdeu o emprego ou teve jornada e salário reduzidos durante a pandemia.
A estudante também diz que por ser mulher negra tem de enfrentar muitas questões na universidade. “Muitas vezes eu preciso ter um conjunto de dados muito maior para que as minhas opiniões sejam ouvidas. Eu percebo que tenho muito mais dificuldade nesse sentido de me fazer valer enquanto cientista e pessoa que está se debruçando sobre um trabalho e tem propriedade para falar sobre o assunto.”
Para ela, o racismo se manifesta de diversas maneiras no ambiente acadêmico, desde violências explícitas, como a de chegar para assistir a uma palestra e pedirem para ela pegar água para o palestrante achando que ela trabalha lá, quanto violências mais “sutis”, como a de ser silenciada e não ser levada a sério.
“Sempre querem nos colocar em um local de não pertencimento, como se [nós mulheres negras] não tivéssemos capacidade para estar ali. E, às vezes, compramos essa narrativa e nos prejudicamos e adoecemos por conta disso.”
Para Andreza da Silveira Jorge, em determinadas áreas da acadêmia é muito mais difícil encontrar mulheres negras ou racializadas. Nos espaços em que ela frequentou, por exemplo, eram pouquíssimos alunos negros, e não só mulheres, mas homens também.
Uma das dificuldades que ela encontra dentro da academia é a de lidar com os referenciais teóricos eurocêntricos sempre muito fechados para o que é certo e errado, o que é cultura e o que é folclore.
Segundo ela, a academia tem se tornado diferente desde o advento da política de cotas, mas “o maior desafio é lidar com esse epistemicídio, essa dureza dos referenciais acadêmicos”.
Outro estudo publicado na revista Sociologia & Antropologia , feito pelas pesquisadoras Marcia Rangel Candido, Danusa Marques, Vanessa Elias de Oliveira e Flávia Biroli, apontou que, durante a pandemia, as mulheres tiveram suas rotinas de trabalho acadêmico mais afetadas e perceberam um aumento das demandas de maneira mais intensa do que os homens.
A pesquisa analisou o impacto da pandemia nas rotinas de trabalho acadêmico de 1.073 pesquisadores das ciências sociais, em 2020, no início da pandemia.
De acordo com o estudo, quando se faz o recorte de raça considerando a produção de artigos científicos, as mulheres não brancas (pardas, pretas, amarelas e indígenas) apresentaram proporções menores de produtividade do que os demais grupos (32%), ao passo que os homens brancos tiveram os maiores níveis de produção (42%).
São as mulheres não brancas, também, que apresentam a maior incidência de respostas indicando que não produziram no período, seguidas pelas mulheres brancas.
Para Marcia Rangel, a pandemia só escancara os problemas sociais já existentes e faz com que as pessoas com maior vulnerabilidade sejam mais afetadas.
“Mulheres negras são as que acessam com maior dificuldade as posições mais estáveis na academia e esses são alguns dados que encontramos também nas ciências sociais. Existe uma hierarquia que coloca uma desigualdade de gênero, os homens estão em maior número [na academia], mas sobretudo uma desigualdade de raça —homens negros estão mais sub-representados do que as mulheres brancas, por exemplo”, diz a pesquisadora.
Como possíveis soluções para os problemas enfrentados pelas acadêmicas durante a pandemia, Fernanda Staniscuaski sugere a prorrogação de prazos de entrega das pesquisas —que de certa medida já vem sendo feita desde o ano passado— e que nos currículos os anos de 2020 e 2021 sejam entendidos como períodos de baixa produtividade. “É preciso [também] conversar sobre, escutar esses grupos que foram mais afetados e fazer ações para pensar nas soluções.”
Para Marcia Rangel, os dados sobre as desigualdades na acadêmia demonstram a relevância de se manter e expandir ações afirmativas para negros acessarem as universidades. “É necessário que exista essa predisposição para formular políticas públicas para que a ciência não se torne ainda mais desigual do que ela já é”, concluiu.