O cangaço foi um fenômeno tipicamente nordestino que se tornou parte do folclore nacional. O movimento era caracterizado pela ação de grupos de foras-da-lei que tinham como hábito os assaltos em bandos a fazendas, sequestros e assassinatos de coronéis entre o século XIX e a primeira metade do século XX. Como pano de fundo para os ataques estavam as questões sociais e fundiárias da região, e os cangaceiros, ainda hoje, são tido por muitos como justiceiros que olhavam pelos menos privilegiados ao estilo Robin Hood.
Avançando décadas no tempo temos um novo movimento criminoso que acabou associada às antigas práticas do sertão brasileiro, mas sem nenhum cunho altruísta. Em um estilo parecido com os dos criminosos de antigamente, os “novos cangaceiros” invadem pequenos municípios portando armamentos pesados, geralmente durante madrugada, e explodem agências bancárias e caixas eletrônicos em busca de dinheiro fácil. Em alguns casos, deixam um rastro de terror, fazendo reféns e disparando contra unidades policiais para evitar que sejam impedidos ou perseguidos.
Esse tipo de ação, tal qual o cangaço original, teve origem no Nordeste, mais precisamente em Pernambuco, em algum momento não definido da década de 1990. No entanto, somente nesta década a prática se popularizou e passou a se alastrar por outros Estados, inclusive Goiás.
Informações da Secretaria de Segurança Pública e Administração Penitenciária (SSPAP) apontam que até a última quarta-feira (22/6) houve 27 tentativas de arrombamento e de explosões de agências bancárias em Goiás apenas em 2016. Enquanto isso, dados da do Grupo Antirroubo a Banco (GAB), vinculado à Delegacia de Investigações Criminais (Deic), indicam que, somente neste ano, foram remetidos ao Poder Judiciário 25 inquéritos policiais com autoria definida. No total, 42 pessoas foram presas vinculadas a ataques a instituições financeiras.
O delegado Alex Vasconcellos, titular do GAB, afirma que foram identificadas desde janeiro sete quadrilhas diferentes agindo em Goiás: duas na região norte, uma na região metropolitana de Goiânia, uma no oeste, duas no sul e uma no sudoeste. Desse total, quatro foram desmanteladas com a prisão dos integrantes nos últimos 60 dias – elas seriam responsáveis por 70% dos crimes cometidos em agências bancárias em 2016.
Apesar disso, Vasconcellos destaca que os últimos meses não apontam para um aumento no caso de ataques de novo cangaço quando comparados com anos anteriores. “Na verdade, se houver uma comparação estatística, verá que o crime não está se tornando tão comum, mesmo porque em 2013, por exemplo, foram 86 roubos a banco no primeiro semestre, número muito superior aos deste ano”, afirma.
Um detalhe curioso, que talvez seja justamente o motivo para essa redução, é que, em geral, os bandidos não conseguem sucesso em suas empreitadas graças às tecnologias empregadas nos caixas eletrônicos para evitar os furtos e à política adotada pelos bancos de deixar cada vez menos dinheiro nos equipamentos. Por quê, então, insistem nesse tipo de crime?
“Essa é uma boa pergunta, que inclusive nós mesmos fazemos aos criminosos”, relata o delegado. “Embora não logrem êxito nesse tipo de ação, eles entendem que é a forma mais fácil de conseguir dinheiro. Além disso, muitas dessas quadrilhas não se dedicam exclusivamente ao roubo a banco”, pontua, explicando que o roubo de carga e o tráfico de drogas costumam complementar o repertório dos criminosos.
De qualquer maneira, as invasões dos bandidos continuam, e estão cada vez mais audaciosas.
Ataques
Entre os casos mais recentes está um ataque ocorrido na madrugada de 13 de março, no município de Mara Rosa, no norte do Estado. Na ocasião, os bandidos efetuaram disparos na porta das casas de PMs que estavam de folga e utilizaram moradores como reféns. A quadrilha conseguiu explodir caixas eletrônicos e o cofre da agência do Bando do Brasil. A ação teria sido perpetrada por 12 crminosos que estavam em duas caminhonetes Hilux, em uma Picape Strada e em um Palio Weekend.
Posteriormente, em 2 de maio, uma ação do novo cangaço foi frustrada em São Luís do Norte. O grupo criminoso tentava se apropriar de valores contidos em um cofre de um posto de combustíveis quando foi abordado pela Polícia Militar. Houve confronto e, como resultado, dois suspeitos morreram, outro foi preso e o último conseguiu escapar.
Na madrugada de 4 de junho o município de Mara Rosa foi mais uma vez alvo dos bandidos quando um grupo detonou caixas eletrônicos da agência da Caixa Econômica Federal. Durante o roubo, o município chegou a ficar sem energia, presumivelmente por ação dos próprios criminosos.
Em ação de criminosos no começo deste mês, agência bancária de Mara Rosa foi destruída e município ficou sem energia
A Polícia Militar chegou a tempo de tentar impedir a fuga dos bandidos, mas enfrentou dificuldades com a escuridão na região. Além disso, os bandidos valeram-se de um recurso muito comum nesse tipo de ataque: colocaram reféns na carroceria da camionete na qual fugiam para evitar que a polícia tomasse medidas ofensivas. Também como já se tornou de praxe por parte dessas quadrilhas, os reféns foram abandonados na estrada pouco tempo depois, sem ferimentos.
Combate integrado
Com a reputação em jogo dado à audácia dos criminosos e a proporção das ações, a SSPAP e seu titular, o vice-governador José Eliton, não têm medido esforços para solucionar os casos e evitar que outros semelhantes ocorram. Nesse sentido, o trabalho conjunto da Polícia Civil e da Polícia Militar, inclusive de outros Estados, são fundamentais.
No início deste mês, Eliton coordenou, em Palmas (TO), reunião de trabalho com titulares e representantes de secretarias de Segurança Pública e das mais diversas forças policiais dos estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Rondônia, Maranhão e Tocantins. As discussões culminaram na criação de mecanismos integrados de segurança pública no combate à criminalidade.
Dentre as medidas debatidas, estão o diálogo permanente entre o serviço de inteligência dos organismos de segurança pública desses estados; reuniões de governança entre os órgãos públicos com vistas à obtenção de resultados; ações de prevenção de violência e ações de repressão qualificada da criminalidade; e a formatação de um Pacto de Segurança Integrada contra o crime organizado, principalmente tráfico de armas, drogas e roubos a bancos.
A SSPAP garante que as medidas têm trazido resultados. Uma das maiores vitórias obtidas no combate a essas quadrilhas ocorreu na última segunda-feira (20/6), quando o delegado Alex Vasconcellos e o secretário apresentaram os resultados da Operação Crepitus, que culminou na prisão de sete homens suspeitos de envolvimento nesses crimes.
Vasconcellos afirmou na ocasião que o grupo preso foi o responsável por pelo menos 1/3 dos crimes contra instituições financeiras ocorridas em Goiás neste ano. Somente nos últimos três meses, período em que estavam sendo monitorados pela polícia, esses criminosos realizaram cinco ataques em municípios diferentes: Montes Claros de Goiás, em 23 de abril, Britânia, em 15 de maio, Bom Jardim de Goiás, em 28 de maio, Aragarças, em 2 de junho, e Itapirapuã, em 7 de junho.
Essa quadrilha utilizava os mesmos recursos que se tornaram de praxe para outras do tipo: os explosivos utilizados para detonar os caixas eletrônicos eram furtados ou desviados da construção civil e o armamento era alugado de outras organizações. “Comprar um fuzil de R$ 50 mil não era vantajoso para eles, então eles alugavam de terceiros por um valor menor”, explica Vasconcellos.
O delegado não revela como os criminosos foram identificados, mas ressalta que o trabalho de inteligência e monitoramento de suspeitos é crucial. “O GAB voltou seus esforços a fim de identificar essa organização criminosa. Através de várias diligencias do serviço de inteligência foi feito o monitoramento dessa quadrilha e a comprovação de que eram eles que faziam essa prática criminosa na região oeste do Estado. Diante de tal, foi representado à Justiça pelos mandados de prisão preventiva de alguns dos elementos, e outros foram presos em flagrante delito na semana passada”, explicou.
COD tem papel fundamental no combate às ações do novo cangaço
Na área preventiva – cujo trabalho fica a cargo da PM –, a situação é mais complicada, já que as ações dependem do efetivo policial disponível, que é reduzido em municípios com poucos habitantes como os que costumam se tornar alvos. “Cada cidade é preparada para ter o policiamento para atender suas demandas ordinárias. No caso de uma cidade pequena do Estado de Goiás, onde tem um efetivo suficiente para atender a demanda ordinária, se por ventura esse efetivo for surpreendido por uma ação intitulada novo cangaço, esse policiamento está preparado para imediatamente defender a população que está ali e sua própria vida, e chamar o reforço”, diz o coronel Ricardo Mendes, assessor de comunicação da PM.
Ele explica que em ataques caracterizados como novo cangaço os policiais acionam o Comando de Missões Especiais (CME), que por sua vez destaca unidades como o Batalhão de Operações Especiais (Bope) — que é a responsável pela questão de tratativa em ocorrências com refém e com a utilização de artefatos especiais –, e o Grupo de Radiopatrulha Aérea (Graer), que disponibiliza helicópteros para a averiguação dos casos.
“Além disso, temos destacados em todo o estado como um cinturão na defesa de nossas divisas, o Comando de Operações de Divisas (COD)”, ressalta Mendes. “Ele é a primeira resposta que a PM tem em nível de unidades especializadas para reforçar aquele policiamento ordinário naquela cidade.”
Falta legislação
Ainda que na área policial haja avanços no combate ao novo cangaço, os esforços costumam esbarrar na falta de uma legislação para essa modalidade criminosa. Sem uma tipificação específica, os suspeitos presos geralmente são enquadrados em crimes como furto qualificado, formação de quadrilha e porte ilegal de arma.
Para Ricardo Mendes, esse fator é um dos maiores obstáculos para o enfrentamento a esse tipo de crime. “A permanência dessas pessoas encarceradas é muito pequena diante da pena desses artigos. Há a necessidade urgente de uma legislação específica que atinja os autores do novo cangaço”, defende.
O delegado Alex Vasconcellos corrobora: “acredito que se houvesse um endurecimento das penas, certamente os criminosos ficariam mais tempo presos”, diz.
O próprio secretário José Eliton, na ocasião da apresentação dos resultados da Operação Crepitus, criticou as lacunas que permitem que bandidos cometam crimes graves e sejam soltos pela Justiça pouco tempo depois. “A polícia tem feito o seu papel, tem buscado, tem prendido, tem conseguido fazer. Claro que ninguém aqui ignora as deficiências do sistema penitenciário, mas não é possível mais continuarmos desse jeito”, asseverou.
Para mudar esse panorama, ele anunciou que encaminhou ao presidente da República, ao Ministério da Justiça, à presidência da Câmara e à presidência do Senado um conjunto de propostas – subscrito por sete secreários de segurança pública – de alteração na legislação brasileira “como forma de mitigar os problemas da violência”. “É preciso que o Brasil efetivamente reavelie sua política legislativa do ponto de vista penal e processual-penal”, ressaltou.
Enquanto mudanças não são efetivadas, o vice-governador reitera que a polícia tem se empenhado em buscar todas as provas possíveis de forma a garantir a permanência dos criminosos atrás das grades.