Escalada

Ações para acesso à Cannabis crescem 1.750% em quatro anos em São Paulo

No âmbito federal, também ocorreu aumento dos gastos com a judicialização da Cannabis. O Ministério da Saúde gastou em 2018 cerca de R$ 617 mil para comprar remédios, mais do que o dobro do ano anterior – R$ 277 mil

Cannabis

O número de ações judiciais obrigando que o estado de São Paulo forneça remédios e produtos derivados de Cannabis cresceu quase 18 vezes (1.750%) em quatro anos, passando de oito, em 2015, para 148, no primeiro semestre do ano. Nove em cada dez dessas demandas foram ingressadas por usuários de planos de saúde ou de serviços privados.

A escalada também é observada nos gastos, que já representam 9,5% do total despendido com todas as demandas de remédios requeridos por via judicial. Em 2015, foram R$ 15,2 mil. Entre janeiro e junho deste ano, R$ 4,6 milhões.

No âmbito federal, também ocorreu aumento dos gastos com a judicialização da Cannabis. O Ministério da Saúde gastou em 2018 cerca de R$ 617 mil para comprar remédios, mais do que o dobro do ano anterior – R$ 277 mil.

Segundo Paula Sue de Siqueira, coordenadora de demandas estratégicas de saúde da Secretaria de Estado da Saúde, as ações que obrigam o governo paulista a fornecer a Cannabis medicinal são relativas a doenças para as quais não há evidências científicas sobre a eficácia e segurança, entre elas síndrome de Down, esclerose múltipla e câncer.

“Para epilepsia refratária aos tratamentos convencionais, que é a indicação autorizada pelo CFM [Conselho Federal de Medicina], não houve nenhum pedido”, diz Siqueira.

As demandas judiciais contra o governo paulista são por produtos importados de 45 tipos diferentes. Os preços vão de R$ 400 a R$ 2.300, sem contar a importação.

Siqueira explica que, além dos gastos públicos com terapias não validadas cientificamente, as demandas têm um outro problema: por serem majoritariamente privadas, o estado não faz o acompanhamento desses pacientes.

“Não sabemos como está a evolução, se está melhorando, se apresentou algum efeito colateral ou se simplesmente a pessoa parou de tomar.”
Conforme revelou a reportagem, farmacêuticas que atuam na área da Cannabis medicinal têm promovido educação médica e captado pacientes com suas ações de marketing.

No Brasil, a maioria dos pacientes que precisam de produtos à base de Cannabis só têm acesso a eles por importação autorizada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). São exigidos prescrição, relatório médico e um termo de responsabilidade. As ações ingressadas contra o estado já contam com a liberação de importação.

Na Anvisa, a demanda por pedidos de importação também é crescente. Desde 2015, mais de 7.780 pacientes já obtiveram esse aval. As doenças mais citadas nos laudos médicos são epilepsia, autismo, dor crônica, doença de Parkinson e transtornos ansiosos.

Mas a agência já liberou a importação para mais de 60 indicações terapêuticas –a maioria sem evidências científicas sobre a eficácia e segurança dos produtos.

Além das ações judiciais para a compra de remédios, há outras que pedem autorização para o cultivo doméstico da maconha medicinal. Ao menos 44 pessoas já obtiveram aval para isso, além de uma associação de pacientes da Paraíba, a Abrace Esperança, que planta e produz o óleo para 2.500 associados.

Segundo o procurador do estado, José Luiz de Moraes, que atua na coordenação judicial de saúde pública, a escalada da judicialização da Cannabis reflete o tabu que envolve o tema e o vácuo regulatório.

“Hoje o juiz está liberando e mandando que o estado custeie tudo, já que ele não sabe para o que serve e para o que não serve [os produtos derivados da Cannabis]. E aí vira uma panaceia que só pode ser combatida com ciência.”

Para Moraes, além dos custos da judicialização, há um problema de riscos à saúde. “O uso indiscriminado, sem base científica, vai acabar prejudicando os pacientes que têm um real benefício.”

Em nota, o Ministério da Saúde diz que é a favor do uso de remédios à base de canabidiol só para epilepsia de pacientes que não respondem aos medicamentos convencionais.

O ministério também diz que, até o momento, não foi apresentado nenhum pedido de incorporação de remédios à base de Cannabis ao SUS.

Difícil acesso

“Passei quase 30 anos da minha vida sem sentir prazer. Minha vida era só casa, hospital; hospital, casa. Ele chegou a ter 60 crises por dia. A cada uma, sentia um pavor de perder meu filho”, diz Margarida Marquês Lagame, do Rio de Janeiro, mãe de João Pedro, 33.

“É muito duro ver seu filho tendo uma crise de epilepsia, é desesperador. Cada crise da Rafa é como se eu levasse cinco facadas. Eram cerca de 20, 25 por dia”, conta Adriana Albuquerque de Deus, de São Paulo, mãe de Rafaela, 3.

Os desabafos resumem o drama de pais de filhos que têm convulsões intratáveis com remédios convencionais. Ambas dizem ter encontrado o alívio para essas crises na Cannabis medicinal, especificamente em óleos à base de CBD e THC, mas se queixam das dificuldade do acesso.

Sem condições de importar remédios, Margarida, 70, chegou a comprar flores de maconha do tráfico para fazer o óleo. “Mas não tive coragem de dar para o meu filho.”

Com ajuda da Defensoria Pública do Rio, ingressou com ação para que o governo estadual bancasse o tratamento com CBD. Conseguiu a liminar em junho de 2016. “São três anos que eu não sei mais o que é internar o meu filho por causa das convulsões.”

Aos dois anos e sete meses, João Pedro foi diagnosticado com uma doença rara que, entre outros sintomas, provoca crises epiléticas. Até os 30 anos, tomou mais de 20 remédios diferentes, nenhum capaz de conter os surtos.