Violência contra mulher

Agredida por PM após violência doméstica: “Era pra me ouvir, não me bater”

“Se não tivesse a filmagem, eu seria só mais uma.” É assim que uma técnica…

“Se não tivesse a filmagem, eu seria só mais uma.” É assim que uma técnica em radiologia, de 22 anos, lamenta a batalha para provar que sofreu uma dupla agressão. Ao acionar a Polícia Militar após sofrer violência doméstica praticada pelo irmão, do lugar de vítima, a jovem passou para o de suspeita e acabou levando golpes de cassetete de um policial. A jovem pede para não se identificar pois teme retaliação.

O caso aconteceu na noite de 21 de março, em Presidente Prudente, a 557 quilômetros de São Paulo, mas o vídeo que registra a agressão policial veio à tona apenas no início deste mês. As imagens gravadas por um circuito de segurança mostram dois PMs fora do carro. Um deles aponta o dedo para a vítima e desfere dois golpes com o cassetete. Ele ainda a pega pelo braço com rispidez e a encosta no carro da polícia.

Segundo a jovem, ao atenderem a ocorrência por violência doméstica, os policiais se recusaram a registrar a queixa porque teriam visto que o irmão dela também tinha marcas pelo corpo. A equipe, então, teria dispensado o rapaz.

“Tive uma briga com meu irmão e acionei os policiais. Eles chegaram e me orientaram a ir à delegacia. Nesse meio tempo, meu irmão conversou com os policiais, que acabaram dando razão a ele, alegando que eu não estava aparentemente machucada, mas ele, sim. Dispensaram o meu irmão e indaguei o motivo, já que eu era a vítima que estava procurando a prestação de serviço. O policial não gostou e sacou um cassetete”, diz a jovem.

De acordo com a técnica em radiologia, os PMs não teriam gostado da ironia dela ao agradecê-los pelo mau atendimento na ocorrência. Depois da agressão, ela foi levada para a Delegacia Geral de Polícia Civil de Presidente Prudente por suposto desacato. Foi de pijama e chinelo e sem documentos e o celular.

“Em nenhum momento, eu desacatei. Eles disseram que os xinguei, mas o que falei foi ‘muito obrigada pelos serviços prestados’. Isso foi considerado uma ofensa”, afirma.

“Fiquei machucada na região nas nádegas, o local ficou bem roxo. Meu braço ficou doído por muitos dias. Embora eu não tenha reagido, mesmo assim usaram bastante força.”

Agressão policial é o que mais pesa para a vítima

Técnica em radiologia agredida por policial não quer se identificar por medo de represália - Arquivo pessoal

Técnica em radiologia agredida por policial não quer se identificar por medo de represáliaImagem: Arquivo pessoal

Na delegacia, a jovem conta que foi impedida pelo escrivão de registrar o boletim de ocorrência por violência doméstica contra o irmão e o de lesão corporal contra o policial. Eles, por outro lado, conseguiram fazer a denúncia por desacato.

O servidor público de plantão teria alegado que a delegacia estaria fechada para BOs presenciais. A vítima conseguiu o registro somente no dia seguinte quando procurou a Delegacia da Mulher.

“Ela foi levada dentro do porta-malas, de pijama, sem celular e só de chinelo. Antes de terminar as declarações, já tinham um boletim de ocorrência pronto como se ela estivesse confessando o desacato”, disse uma das advogadas da jovem, Camila Brito.

A vítima não quis detalhar a violência doméstica para preservar os pais, mas considera que, apesar de ter sido agredida pelo irmão naquele dia, o sentimento de injustiça provocado pela ação dos policiais é o que causa maior indignação.

“Quem me agrediu mais foi meu irmão, porém ser agredida por um policial foi o que pesou mais em mim. O que me deixou mais indignada foi a ação do policial, sem dúvida”, diz.

“Com todos esses fatos acontecendo em um curto período de tempo, um atrás do outro, além do sentimento de injustiça que já dói muito, fiquei em choque. Não dava para acreditar no que estava acontecendo. Era para me ouvirem, e não me baterem.”

Traumas pós-agressão

O vídeo que mostra a agressão policial é de uma câmera da empresa que fica ao lado da casa onde a jovem mora com os pais e o irmão. Ele se tornou a principal prova contra os policiais, já que o fato não foi presenciado por testemunhas. Eram pouco mais de 23h quando tudo aconteceu.

“Minha versão jamais seria considerada se não tivesse sido filmado. Continuo atrás [de justiça] porque tem essa filmagem, caso contrário já teria desistido. Agora, eu sei como é difícil buscar a justiça dentro do meio que deveria ser justo com você. Se não tivesse a filmagem, eu seria só mais uma”, diz.

A técnica em radiologia revela que a dupla violência sofrida provocou traumas, como dificuldade para dormir e medo de sair às ruas pelo fato de os policiais não terem sido afastados.

“Não consigo mais dormir direito. Deito às 6h e acordo duas ou três horas depois. Um dia desses, eu acordei pensando que tinha um homem no meu quarto”, conta.

Policiais são denunciados por nove crimes

O caso gerou uma notícia-crime da defesa da jovem contra os quatro policiais militares envolvidos na ocorrência e o escrivão que recusou o registro das denúncias da vítima.

Eles são apontados pela defesa no Ministério Público pelos crimes de “prevaricação, lesão corporal, cárcere privado, abuso de autoridade, omissão de socorro, coação, falsificação de documento público e associação criminosa, porque eram quatro policiais e mais o escrivão que a atendeu”, explica a advogada Camila Brito.

“Ele pressiona a vítima contra a viatura usando a força do corpo, e isso não pode ser feito por um policial homem. Deveria ser por um agente de estado do mesmo sexo. Acreditamos que também pode ser apurado o ato de importunação sexual”, diz Ana Letícia Belo, advogada que também acompanha o caso.

As denúncias da jovem também são acompanhadas pelo coletivo Pela Vida das Mulheres, de Presidente Prudente. Em nota, o grupo “expressa o mais profundo repúdio e externa consternação com a postura truculenta e desproporcional dos quatro policiais militares na abordagem com a vítima de violência doméstica”.

O coletivo afirma ainda que o vídeo “causa repulsa, dor, indignação”, já que a vítima sofreu violência de “quem tem o dever de proteger e zelar pelo bem-estar da sociedade”.

O grupo ainda acredita que o caso é reflexo da “violência baseada em gênero, tão enraizada na sociedade brasileira” e que também atinge “o campo policial e repercute no comportamento dos profissionais”.

Questionada por Universa, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) de São Paulo informou que “o desacato e o possível abuso de autoridade são investigados pela Central de Polícia Judiciária (CPJ) do município e também pela Polícia Militar, que instaurou um Inquérito Policial Militar (IPM) para apuração dos fatos”.