Alertas do TCU sobre falhas no sistema elétrico foram ignorados desde 2010
Os problemas são antigos e se arrastaram também pelos governos de Lula, Dilma e Temer
Sucessivos governos desde 2010 ignoraram alertas do TCU (Tribunal de Contas União) sobre falhas no sistema elétrico. Problemas estruturais que pesam no atual desequilíbrio do setor, em grande maioria, não foram sanados.
Com a crise atual, que se agrava mês a mês diante das previsões de menos chuva, a SeinfraElétrica (Secretaria de Fiscalização de Infraestrutura de Energia Elétrica) da corte montou um plano de monitoramento.
A intenção é cobrar soluções do governo Jair Bolsonaro e de órgãos vinculados, como a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico).
Os problemas são antigos e se arrastaram também pelos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB).
O MME (Ministério de Minas e Energia) afirmou que sempre responde às recomendações do TCU. O ONS (Operador do Sistema Nacional) disse que busca melhorar a operação com base nos recursos disponíveis.
Foram identificadas, desde 2010, por exemplo, dez problemas com potenciais de dano aos consumidores.
Somente um deles custa ainda cerca de R$ 3,5 bilhões por ano a mais nas contas de luz. Trata-se de um descompasso entre as chamadas garantias físicas das hidrelétricas (energia assegurada, ou prometida, para a venda) e a energia que elas efetivamente injetam no sistema.
Em 2014, o TCU recomendou que o MME fizesse a revisão das garantias físicas. Segundo o TCU, as hidrelétricas “têm gerado menos do que a energia assegurada”.
Para contornar o problema, o governo criou um mecanismo de compensação entre as usinas. As que produzem menos do que o prometido são cobertas por aquelas que produzem mais do que o compromissado.
Na avaliação de técnicos, nos últimos anos o saldo de geração sempre foi aquém do esperado. Segundo o TCU, “não existe um mínimo assegurado”.
O problema não foi corrigido devidamente. Em 2018, o TCU constatou que as usinas entregaram 1,3 GW médio a menos do que o prometido. À época, o governo, porém, contratou 4,9 GW médios para cobrir o déficit de fornecimento das geradoras de energia.
Para isso, foram autorizados nove leilões, chamados de leilão de energia reserva, a um custo estimado de R$ 116 bilhões. Esse valor foi parar na conta dos consumidores.
O assunto virou alvo de um monitoramento específico. Segundo o TCU, o MME já deu início à revisão dessas garantias, mas ainda está incompleta por tratar “apenas variáveis econômicas”.
Para o tribunal, faltaram estudos sobre consumo da água e produtividade das usinas. De acordo com a corte, sem essa revisão, não é possível ter o correto planejamento da expansão da capacidade de geração da energia elétrica e os consumidores se tornam reféns da pressão dos preços, sempre que as empresas precisam ir a mercado adquirir energia —mecanismo, em geral, mais caro.
Outra auditoria apontou falhas nos modelos de cálculos de projeção de oferta e procura de energia. Eles não computavam o atraso de obras de geração, distribuição e transmissão.
Durante o monitoramento, os técnicos do TCU verificaram que metade de uma amostra de 137 obras em janeiro de 2015 atrasaram por causa de dificuldades na obtenção de licenças ambientais por órgãos estaduais.
Essas licenças deveriam ter sido obtidas previamente. Com os atrasos, que chegaram a até um ano no caso das transmissoras, a energia só entra efetivamente no sistema muito depois, tornando-se um fator de risco no planejamento.
Há erros também, segundo o TCU, na contratação de energia de termelétricas. Elas são acionadas em momentos como o atual, em que os reservatórios estão muito baixos. Para a corte, não dá para confiar nem mesmo nesse parque que tem usinas sucateadas ou paralisadas.
Em 2019, a indisponibilidade dessas geradoras variou de 17% a 38% de toda a capacidade instalada.
No fim de 2020, quando o governo passou a autorizar a contratação de térmicas, o TCU pediu um relatório da Aneel sobre a situação dessas usinas. O prazo para entrega vence no segundo semestre deste ano.
A situação piorou. Segundo dados da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), a taxa de indisponibilidade vem subindo desde 2015.
No ano passado, térmicas a diesel ficaram indisponíveis, em média, 53% do tempo. No caso das térmicas a óleo combustível, elas ficaram paradas 26% do período pago. Nas usinas a gás e carvão, 19%.
Além disso, acórdãos e processos relacionados à crise de 2015, que culminou em pequenos apagões pelo país, por exemplo, levaram o TCU a emitir alertas, recomendações e até determinações ao MME.
Boa parte das medidas não foi atendida até hoje, o que compromete a segurança energética, segundo técnicos do tribunal. Agora, eles se preparam para uma nova rodada de fiscalizações por causa da atual crise hídrica, a pior dos últimos 91 anos.
No que se refere à vazão, auditores do TCU apontaram a necessidade de obras nos rios para ampliar margens e aprofundar o leito, além de recomposição da mata ciliar.
Se tais medidas tivessem sido implementadas corretamente, já garantiriam maior volume de água nas hidrelétricas.
Esse trabalho, no entanto, nunca foi realizado como deveria diante do agravamento da situação fiscal do país, levando o governo a cortar gastos.
Em entrevista recente à Folha, o ministro Bento Albuquerque (Minas e Energia) afirmou que o Orçamento prevê R$ 38 milhões por ano para essas obras a cargo do MDR (Ministério de Desenvolvimento Regional).
No processo de capitalização da Eletrobras, aprovado pelo Senado na quinta-feira (17), houve a previsão de destinação de R$ 850 milhões por ano para a recuperação de rios com parte dos recursos levantados com a desestatização.
Como resposta ao TCU na crise de 2015, o governo apresentou um plano em que pretendia permitir a ampliação da potência das usinas já instaladas (por meio de compra de mais equipamentos) e a implementação de usinas flexíveis (acionadas em momentos de crise próximas aos grandes centros consumidores). Nem mesmo os estudos para isso foram realizados, segundo a corte.
Pelo lado do consumidor, os técnicos consideram ainda que o modelo de bandeira tarifária demora a sinalizar a alta do preço da energia, o que mantém o consumo elevado quando se deveria economizar.
Na crise atual, os preços estão altos desde o fim do ano passado com o acionamento das térmicas. Porém, a bandeira vermelha só entrou em vigor recentemente.
Ministério diz que segue recomendações do TCU
O MME afirmou, em nota, que “sempre responde às recomendações de determinações do TCU”. “Esses processos, por demandarem providências, duram muitos anos.”
Um dos exemplos, segundo a pasta, vem sendo a atuação sinérgica com o TCU na revisão das garantias físicas das hidrelétricas. “O processo envolve entidades como ANA [Agência Nacional de Água], Aneel, EPE, ONS e o próprio MME, e terá como resultado uma adequação maior à realidade do sistema elétrico estimado para 2025.”
Sobre os leilões de reserva, o ministério disse que, dentre as dez contratações de energia e transmissão em 2021, discute-se a possibilidade da participação, além das térmicas, de usinas hidrelétricas existentes que possam ser objeto de ampliação.
Em relação à bandeira tarifária, o ministro Bento Albuquerque afirmou à Folha que o modelo será revisto.
O ONS, também nota, disse que “busca sempre a melhor operação do Sistema Interligado Nacional (SIN), considerando os recursos disponíveis”.
“Para tal, o ONS incorpora as melhores informações sobre a disponibilidade das unidades geradoras, sejam térmicas ou de outras fontes, nos seus estudos e análises que contemplam o horizonte de até cinco anos à frente”.
“Para o atual planejamento e a programação da operação do SIN, os atrasos verificados”, segundo o órgão, “não têm impacto”.
Procurada, a Aneel não quis comentar.