Artigo: O Cachorro
O mundo é o nosso grande espelho. É através da observação do outro que aprendemos…
O mundo é o nosso grande espelho.
É através da observação do outro que aprendemos como falar, como agir ou reagir. É vendo, ouvindo, copiando que nos tornamos quem somos. Por isto, torna-se tão natural nos identificarmos com os “iguais”, assim como é instintivo defendermos a nossa raça diante das outras.
Isto vem de tempos imemoriais.
Pais defendem filhos dos mais intransponíveis perigos. Exércitos se unem para se defender num sentido amplo de sobrevivência.
Uma amiga ancestral, apaixonada em sua cachorra, me dizia uma vez que, quando grávida, imaginava que sua filha seria irmã da sua cachorra. Seria um amor parecido, um carinho igual.
Nada feito. Ao nascer, sua filha tomou um espaço desconhecido até então por ela, fazendo-a se desculpar apressadamente com a “Julie”. Foi mal, mas não da mais pra tratar você como filha.
Pois bem, quero – portanto – pedir desculpas aos meus irmãos em Raça. Desculpo-me com breve tristeza a toda a Humanidade. Não tenho filhos, não projetei ainda em alguém meu defeitos e tudo aquilo que não consegui ser, como pais invariavelmente o fazem.
Mas eu tenho uma cachorra.
Que, talvez, a trate como gente.
Perdido nos meus pensamentos, alimento manias estranhas. Umas delas é observar a relação das pessoas com a morte. O medo do câncer, do acidente, da visita inesperada ou na confirmação direta do Inevitável.
Penso sobre a última flexão de raciocínio de quem morre. O susto, o arrependimento, a última frase trabalhada da despedida. Será que a vida passa mesmo inteira diante de nós?
Qual o último olhar de quem morre? Quando a mão se solta da outra, relaxando na última força já fraca e distante?
Mas, penso, principalmente, nos que morrem sós. Nos abandonados, na solidão de quem não tem, nunca teve, mas – sobretudo – que ali naquele momento, não tem ninguém.
E isto é tudo que penso quando penso naquele cachorro que, abandonado, foi torturado com pauladas e, depois, envenenado dentro de um supermercado onde centenas de pessoas trabalham e frequentam e que, fora os que participaram disto, não interviram, nada fizeram. Nada sentiram?
Quando penso neste caso, sou mais cachorro que humano, em todos os sentidos, até nas limitações da compreensão de como é possível haver mãos tão dispostas ao julgamento, ao ódio, ao ato, à morte.
O que se passou diante dos olhos tristes do mais sociável dos animais domésticos depois de, abandonado, sem ninguém por ele, e sem a chance de gritar por ajuda ou mesmo de fazer mal em defesa própria, sentiu a primeira paulada, o sangue da agressão, o ardor nauseante do envenenamento.
E então sinto que a sua agonia é a minha agonia. E que, da pior forma possível, eu encarno no mundo animal e irracional, em todas as limitações para compreender o gesto que eu, humano, não consigo traduzir, não consigo espelhar.
Concluo que a violência contra qualquer criatura indefesa é a natureza física do Mal.
De olhos fechados, tentando esquecer tudo isto como se não tivesse acontecido, eu tento – também sem sucesso – responder: em qual espelho de mundo saiu a cópia de atos e gestos de gente que agride, tortura, envenena e mata um animal indefeso, um outro ser vivo?
Nada adianta: em mim, só fica a primeira paulada, a primeira dor, e a incompreensão dos olhos de solidão que observam a maldade que ronda a Humanidade. Só me resta, como ele, fechar os olhos e, em dor, descansar.