Associações alertam sobre riscos no corte de 400 milhões do orçamento federal para pessoas com HIV
Para especialistas, redução nos recursos afeta compra de medicamentos e medidas de prevenção
O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2023 envolve uma série de cortes no Ministério da Saúde, que juntos chegam a 3,3 bilhões de reais. É o que aponta um relatório do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e da associação independente Umane, que compara os valores de 12 programas do Sistema Único de Saúde (SUS) com os recursos deste ano. Um deles é o Atendimento à População para Prevenção, Controle e Tratamento de HIV/AIDS, que deve perder 407 milhões de reais para o ano que vem.
O corte ameaça iniciativas voltadas, entre outras frentes, à compra de medicamentos antirretrovirais para pessoas que vivem com HIV e estratégias de prevenção da doença, como a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), que protege contra a infecção pelo vírus, e a Pós-Exposição (PEP), que evita a contaminação após ser exposto ao microrganismo, além de campanhas de orientação sobre o uso de preservativos e a importância de testagens. A previsão provocou uma reação de associações de combate à Aids, que alertam para o avanço da doença nos últimos anos e a possibilidade de um aumento não apenas de casos, mas da mortalidade.
— Com menos recursos para medicamentos, você pode interferir diretamente no tratamento da pessoa, na qualidade de vida e também na transmissão, já que a terapia hoje pode deixar o indivíduo intransmissível. A médio prazo isso tem um impacto nas novas infecções, mas também no número de óbitos. Hoje você consegue ter uma qualidade de vida que só é possível pelo tratamento, então se a pessoa não consegue aderir a ele, ela fica em risco — avalia o presidente do Fórum de ONGs/Aids do Estado de São Paulo (Foaesp), Rodrigo Pinheiro.
Ele, assim como representantes de outras associações ouvidas pelo GLOBO, acredita que o enfrentamento da epidemia no Brasil, principalmente na área de prevenção, passa por um retrocesso nos últimos anos. É o caso do vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), responsável pelo Observatório Nacional de Políticas de Aids, Veriano Terto Jr., que destaca ainda que o ideal no momento seria haver mais recursos, e não uma redução.
— Há alguns anos não incorporamos inovações em nosso programa. Há uma série de novas combinações de medicamentos no exterior, mas que no Brasil vemos de forma muito pessimista que consigamos ter esse tratamento atualizado de Aids. Então nós recebemos (o corte) com muita preocupação, porque temos ainda de 10 a 12 mil mortes anuais no Brasil, é um problema de saúde pública muito importante — afirma o doutor em saúde coletiva.
Pinheiro e Terto Jr. explicam que é graças ao avanço das terapias que conseguem inibir a replicação do vírus no organismo, e até mesmo torná-lo indetectável, além das campanhas de prevenção, que o Brasil passou por uma mudança no perfil da doença no início do século XXI, reconhecida por autoridades mundiais. Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde de 2021, por exemplo, a mortalidade apresentou uma queda de 30% de 2010 a 2020.
A prevalência do vírus na população, no entanto, permanece em níveis elevados. Desde 1980, quando o primeiro caso de HIV foi registrado no Brasil, a doença manteve uma tendência de crescimento ou estabilidade. Em 2019, por exemplo, último ano pré-pandemia, foram 37.731 novas infecções, segundo dados do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI), do Ministério da Saúde. São 10 mil casos a mais que os 26.518 diagnósticos registrados vinte anos antes, em 1999, quando a doença era um motivo ainda maior de alerta.
Além disso, embora em 2020 e 2021 de fato tenha sido identificada uma redução, Terto Jr. explica que são números irreais uma vez que, pelo contexto de isolamento social, muitas pessoas não buscaram os testes e podem estar com o diagnóstico atrasado. Ele afirma que esse crescimento visto nas últimas décadas é preocupante especialmente entre os mais jovens. Enquanto de 2009 a 2019, a taxa de detecção da doença se manteve estável na população geral, ela cresceu 28% entre os jovens de 15 a 24 anos.
— Há muito tempo que não vemos uma campanha de prevenção mais ampla, e esse aumento entre os jovens é muito preocupante. A PrEP, por exemplo, é uma realidade, mas ainda é muito pouco conhecida, muitas pessoas não sabem o que é essa possibilidade de prevenção. Além do estímulo ao próprio uso da camisinha, porque falar de aids, de saúde sexual tem sido um receio para muita gente hoje. E nesse cenário nós temos sim uma tendência preocupante de aumento de casos — diz o vice-presidente da ABIA.
Escassez de lamivudina
Para os especialistas, um sinal de que a compra de medicamentos para o HIV pode ser afetada pelo corte é a situação atual da escassez da lamivudina. Em ofício enviado no último dia quatro às coordenações estaduais e municipais dos Programas de HIV/Aids, o Ministério da Saúde relata uma falta de estoque do antirretroviral, um dos mais utilizados no tratamento, porque os “laboratórios fabricantes estão com dificuldade para atender o aumento da demanda”.
Isso levou à permissão temporária de esquemas de “simplificação” do uso dos antirretrovirais, que envolve a substituição dos medicamentos, e à orientação de que sejam entregues quantitativos do remédio apenas para o prazo de um mês, em vez de dois a três meses que geralmente eram indicados.
O coordenador-geral da do Grupo Pela Vidda, uma das primeiras ONGs voltadas para pessoas que vivem com HIV, Marcio Villard, destaca ainda que essa escassez pode impactar pacientes que estão respondendo bem ao tratamento e precisarão trocar o remédio, ou aqueles que moram longe dos postos de saúde, e terão que se deslocar mais vezes para conseguir o total necessário. Para ele, é uma questão de logística e uma possível já falta de recursos.
— Quando a pessoa está em tratamento e ele vai bem, nenhum médico vai querer mudar no meio. Isso tem que ser uma avaliação do médico, não uma situação forçada. O ministério justifica que é uma questão de oferta, ou seja, que não tinha laboratório para vender, mas não temos informações sobre isso. O que sabemos por representantes no Conselho Nacional de Saúde é que o governo faz um orçamento para comprar um medicamento, mas desse valor empenha apenas parte e não explica por quê. Então o remédio não foi comprado e não há estoque suficiente. Agora é a lamivudina, daqui a pouco pode ser outro medicamento — diz Villard.
Em relação à lamivudina, o coordenador afirma que o grupo está cogitando formalizar uma ação pública pelo Ministério Público Federal (MPF) para cobrar justificativas do ministério. Já sobre os cortes, Pinheiro, do Foaesp, diz que já foi solicitada uma reunião com o relator do orçamento no Senado Federal, o parlamentar Marcelo Castro (MDB), para buscar manter os recursos do programa de tratamento do HIV durante a votação do PLOA.
Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que “nenhuma política pública será interrompida” e que busca “adequações” orçamentárias para 2023 com o Congresso Nacional.
Em relação ao lamivudina, a pasta diz que não há desabastecimento. “No mês de setembro, houve um crescimento rápido e acima do previsto do uso dos esquemas simplificados de tratamento. O aumento ocorreu em razão da mudança na prescrição de tratamento antirretroviral, que no último mês passou a não exigir a avaliação prévia da câmara técnica assessora”, escreve na nota.
O ministério acrescenta que iniciou nesta terça-feira (11) a distribuição de cerca de 5 milhões de unidades do medicamento a todos os estados. Novas entregas estão previstas até o fim do mês.