Racismo

Autoridades podem não considerar racismo em caso de Carrefour, diz filósofo

O professor Wilson Gomes, da UFBA, diz que a forma mais terrível de discriminação racial é a semiótica, que só reconhece o preconceito quando ele é explicitado na linguagem

Dois dias depois do assassinato de João Alberto Silveira Freitas, o Nego Beto, por seguranças de uma unidade do Carrefour em Porto Alegre, Wilson Gomes, doutor em Filosofia, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia e coordenador do Instituto Nacional de Ciência & Tecnologia em Democracia Digital, tuitou: “A forma mais insidiosa de discriminação, inclusive racial, é a discriminação semiótica”.

O acadêmico, que acaba de lançar o livro “Crônica de uma tragédia anunciada — Como a extrema-direita chegou ao poder” (Sagga), conversou com O GLOBO sobre a dificuldade da sociedade de reconhecer o preconceito racial quando ele não é explicitado na linguagem.

Por que é difícil para a delegada responsável pelo caso ver racismo no assassinato de João Alberto Silveira Freitas?

Não é fácil detectar objetivamente o racismo que orienta a leitura que o agressor faz da vítima. Se o racismo, o desprezo por mulheres, o ódio aos homossexuais, a aversão a pobre, nordestino, muçulmanos, não se transformarem em declarações, insultos, vocativos, eles não terão materialidade suficiente para serem objetivamente admitidos como motivação do ato que se segue. Não quer dizer que o ato em si não seja moralmente e legalmente condenável. Além disso, pode acontecer de as autoridades que apuram o caso ou que depois o julgam não consigam nem sequer perceber a dimensão racista que orientou a atitude do agressor, pois o preconceito que se compartilha dificilmente é visto objetivamente.

Como assim?

Um amigo me disse candidamente que era “lógico” pensar que, se um japonês e um negro estiverem correndo na rua depois de um roubo, o negro era provavelmente o culpado. Na verdade, ele estava compartilhando um preconceito social. E tão intensamente que não o via como preconceito, mas como resultado da lógica e profetizador estatístico de novos acontecimentos. Um delegado que considere razoável que um segurança trate qualquer negro, pobre ou periférico — e as três propriedades costumam convergir — com franca desconfiança e ostensiva hostilidade enxergará “lógica” onde certamente há preconceito social. E é assim que delegados vêm há séculos descartando, com consciência tranquila, a motivação homofóbica, a misoginia, o racismo.

O que significa o termo discriminação semiótica?

Estamos o tempo todo tentando entender o mundo, os eventos, as pessoas. Para isso, lemos os signos que elas emitem. Isso é o que se poderia chamar de semiótica ou hermenêutica sociais. Como não dá para, a cada nova pessoa, coletar todos os dados possíveis e, por ensaio e erro, tentar decifrá-la, usamos as experiências acumuladas de observação e as codificações que criamos a partir delas ou que nos foram ensinadas. É por esta porta que entra, insidioso, o preconceito social ou pessoal. Aprendemos socialmente, por exemplo, que os pobres são mais vulneráveis, defendem-se menos da agressividade e da humilhação, quase ninguém se importa com eles. Então, nos comportamos de acordo.

E como isso se traduz na sociedade?

Desse ponto de vista, é uma enorme desvantagem social ser pobre, como ser de qualquer minoria. Se for pobre, não seja preto, que aí são duas vulnerabilidades juntas. Se for gay, não pareça da periferia. Pois assim que o segurança da loja, o policial, o fortão da boate, te colocar nas caixinhas de pobre e da periferia, a atitude deles mudará: de cuidadosos, prudentes e até servis com quem parece poder humilhá-los, passam a se sentir autorizados ao esculacho, à ofensa, à humilhação. E a depender das circunstâncias, autorizados ao chute, ao joelho no pescoço, ao estrangulamento, ao estupro. É assim que funciona o invisível e frequentemente indetectável racismo semiótico.

O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que não há racismo no Brasil. Isso reforça as velhas ideias de democracia racial?

Que saudade das “velhas ideias de democracia racial no Brasil”. Pelo menos naquele caso havia a ideia de que a identidade nacional passava necessariamente pela aceitação de que somos um povo mestiço e de que nenhuma das nossas matrizes raciais e culturais deveria ser deixada para trás. Em tempos tão selvagens e brutos, a ideia de que todo brasileiro é essencialmente africano, europeu e ameríndio pode ser ingênua e romântica, mas é muito mais reconfortante e instigadora de um projeto construtivo de país do que a denegação bruta e cínica do racismo (à Mourão), ou o ataque cotidiano e institucional aos movimentos antirracistas (à Sérgio Camargo), ou a defesa do discurso racista como forma de liberdade de expressão (à Bolsonaro).

A comparação de que o racismo no Brasil é “menos pior” do que nos EUA faz algum sentido?

A ideia de um racismo melhor que o outro é eticamente repugnante. A ideia de que a humanidade pode ser segmentada em raças, feito cães, é cientificamente rejeitada e epistemologicamente inaceitável. A ideia de que pelo menos uma das raças com que se classificam os seres humanos deva ser desprezada, hostilizada e humilhada é moralmente desprezível. Não há nada de bom, do ponto de vista moral ou intelectual, no racismo. Não existem raças naturais ou biológicas. O racismo é que inventou, fabricou “raças” toda vez que apareceu na história. E continua inventando.