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Auxílio emergencial reduz a desigualdade ao menor nível histórico

Programa consome R$ 50 bilhões por mês e especialistas afirmam que impacto fiscal impede que seja pemanente. Pesquisadores apontam modelos de transição para o benefício

A Caixa realiza nesta quarta-feira (26) o pagamento de uma nova parcela do auxílio emergencial de R$ 600. Além do saque da 5ª parcela para inscritos no Bolsa Família com NIS terminado em 7, aniversariantes de dezembro recebem via poupança digital a 4ª, a 3ª, a 2ª ou a 1ª parcela, conforme a data em que tiveram o cadastro aprovado.

A injeção na economia de R$ 50 bilhões a cada mês por meio do auxílio emergencial para informais reduziu a pobreza e fez a desigualdade brasileira chegar a seu menor nível histórico, de acordo com cálculo inédito do sociólogo Rogério Barbosa, do Centro de Estudos da Metrópole da USP.

Sem esse auxílio, que, segundo especialistas, é insustentável diante das restrições das contas públicas, a crise econômica provocada pela pandemia teria feito o Brasil retroceder ao mesmo nível de concentração de renda de 50 anos atrás.

— Foi uma queda (da desigualdade) sem precedentes. Se não houvesse o auxílio, todo o esforço redistributivo dos últimos 25 anos teria se perdido — afirmou o pesquisador.

O efeito artificial aumenta a pressão sobre o governo por uma transição capaz de contornar o impacto negativo que a retirada do benefício pode gerar numa crise econômica.

São 60 milhões de brasileiros no programa, que foi um fator relevante no aumento da aprovação do presidente Jair Bolsonaro em junho, apontada pelo Datafolha na sexta-feira. Entre os desempregados, a reprovação caiu nove pontos em relação a junho, de 43% para 34%. Já o apoio subiu 12 pontos, de 24% para 36%, no mesmo período.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, e o próprio presidente já afirmaram, porém, que o pagamento do benefício de R$ 600 não é viável a longo prazo. O impacto do programa sobre as contas públicas é significativo.

Os gastos de apenas um mês do auxílio correspondem a um aumento de 47% em relação aos quase R$ 34 bilhões que o governo desembolsou em todo o ano passado com o Bolsa Família.

O governo gasta com o auxílio mais de 17 vezes o que transfere no programa Bolsa Família por mês. O valor do benefício aumentou e o número de pessoas atendidas também.

O peso fiscal expressivo do auxílio emergencial inviabiliza torná-lo permanente com as contas públicas já deficitárias. Anualmente, ele representa 7% do Produto Interno Bruto (PIB), mais que o dobro destinado por países desenvolvidos a transferências de renda.

Efeito para os mais pobres

Diante da magnitude da crise provocada pela pandemia, mesmo economistas considerados fiscalistas se manifestaram a favor da criação do benefício, que teve valor proposto inicialmente pelo governo de R$ 200, montante depois ajustado no Congresso para R$ 600.

A preocupação agora, porém, é que a combinação de um aumento de despesas públicas por um prazo longo com a queda na arrecadação de impostos devido à pandemia gere aumento descontrolado do rombo nas contas do governo. Isso prejudica justamente os mais pobres, como ocorreu na recessão de 2014 a 2016.

Segundo especialistas, o desequilíbrio fiscal acaba por minar a confiança e reduzir o investimento privado, além de contribuir para alta de juros, redução do crescimento e aumento do desemprego. Os mais pobres são os mais afetados com a piora do mercado de trabalho.

Até agora, essa injeção de recursos teve efeito inegável sobre a concentração de renda. Barbosa calculou o impacto do auxílio emergencial no Índice de Gini, que varia de 0 a 1: quanto mais próximo de 1, maior a concentração.

Segundo o estudo, a queda no índice este ano foi superior à dos oito anos do governo Lula, período recente de maior redução da desigualdade. Caiu de 0,543 em 2019 para 0,492 em maio deste ano. Sem o auxílio, o Gini hoje seria de 0,569, comparável ao de 1970: 0,565.

As duas décadas entre 1994 e 2014 foram marcadas por melhora na distribuição de renda. A estabilização da moeda, com o fim da inflação, a expansão dos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, e o aumento do emprego formal e do nível educacional da mão de obra ajudaram o Brasil a reduzir a distância entre ricos e pobres.

Barbosa observa, contudo, que a desigualdade vinha aumentando desde 2016 sem trégua. Após a recessão, a recuperação da renda só aconteceu nas camadas mais altas. As transferências do Bolsa Família ficaram defasadas, e o atual governo deixou acumular filas na concessão do benefício. Atualmente, 14,2 milhões de famílias estão cadastradas.

Perda entre assalariados

Além do auxílio, contribuiu para a redução da desigualdade o fato de a pandemia ter causado perdas econômicas para pequenos empresários e trabalhadores com carteira assinada, que tiveram contratos suspensos ou jornadas e salários reduzidos por meio de acordos.

A compensação do governo não repôs totalmente as perdas. Já nas faixas mais baixas de renda atendidas pelo auxílio, a ajuda até superou ganhos anteriores.

— Houve alta de 10% a 11% em alguns estratos mais baixos de renda. E perda equivalente nos mais altos. Trata-se de uma equalização muito indesejada: semipobres doam para pobres, no contexto de crise. O auxílio não é sustentável, mas há que se organizar como retirá-lo — alerta Barbosa.

Naercio Menezes Filho, professor do Insper, identificou efeitos do auxílio na desigualdade racial e entre os mais e menos escolarizados. A pobreza chegaria a 28% entre os que têm até ensino médio incompleto sem o auxílio. Entre os que têm ensino médio completo ou mais ficaria em 18%.

Com o benefício, que conseguiu boa focalização nos mais pobres mesmo com as fraudes, o indicador cai para 12% entre os menos instruídos e para 9% entre os mais.

— O mesmo acontece quando se compara por raça. A pobreza entre pretos, pardos e indígenas ficaria em 32% sem o auxílio. Com a ajuda, está em 14% — diz o economista.

Foco em crianças

Entre os brancos, ficaria em 19% sem a transferência. Com o auxílio, está em 10%. Menezes Filho diz que já era previsível um reflexo do auxílio emergencial na aprovação do presidente:

— Em maio, já previa que a avaliação poderia melhorar entre os mais pobres, mas não dá para manter isso até 2022. Provavelmente, o presidente, animado com a aprovação, dê continuidade pelo menos até o fim do ano ao benefício.

O pesquisador propõe como uma possível transição que crianças pobres, cerca de dez milhões no país, recebam R$ 400 mensais. As famílias pobres sem crianças continuariam atendidas pelo Bolsa Família. O gasto estimado seria de R$ 64 bilhões por ano, quase o dobro do Bolsa Família:

—É factível. A pobreza entre os lares com crianças cairia de 25% para 11%. Temos que ajudar essa nova geração, que, daqui a 20 anos, estará terminando o ensino médio, metade entrando na universidade. Podemos ter um país diferente.

Pedro Ferreira de Souza, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), também trabalha numa proposta para substituir o auxílio em conjunto com outros pesquisadores do instituto, com foco em crianças.

Os lares elegíveis seriam os com renda per capita de até R$ 250, mas todos com crianças, de qualquer renda, receberiam um benefício. O programa poderia transferir R$ 220 bilhões, entre 2% e 3% do PIB, semelhante ao que fazem países desenvolvidos:

— Ainda estamos estudando faixa etária, valor e formas de financiamento, mas sabemos que as famílias com crianças são as mais pobres e mais jovens, nas quais há muita instabilidade na renda — diz Souza. — É impossível acabar com o auxílio de uma hora para outra. Vai ser necessária uma transição, reduzindo gradualmente até o fim de 2021. Seria tempo suficiente para montar um novo desenho de política social, que terá que ser mais abrangente e com benefício maior do que antes da crise.

O auxílio também impacta a taxa de desemprego. A prorrogação por dois meses permitiu que mais pessoas permanecessem em casa isoladas, sem procurar emprego. Bruno Ottoni, pesquisador do IDados, diz que a alta do desemprego será mais forte no fim do ano, quando o benefício deve acabar ou diminuir. Ainda não há definição do governo:

— O ideal seria que as pessoas compensassem o fim do auxílio no mercado de trabalho. Mas, como não conseguimos controlar a pandemia, fica mais difícil.