Bolsonaro escanteia seus rivais e fideliza evangélicos para 2022
Num grupo de WhatsApp, um pastor brinca que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) atingiu…
Num grupo de WhatsApp, um pastor brinca que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) atingiu imunidade de rebanho no eleitorado evangélico. Estaria protegido contra o “vírus de esquerda” por ter ampla maioria de uma fatia que representa cerca de 30% dos brasileiros.
Mas não é só o campo progressista que precisa se preocupar com a fidelização ao bolsonarismo dos principais líderes evangélicos do país –estima-se que 70% do segmento tenha aderido a ele em 2018.
Muitos pastores que marcharam junto com o governador João Doria (PSDB) agora dizem que ele perdeu moral com as igrejas. E isso, apostam, sairá caro na eleição de 2022, se ele conseguir pôr de pé a candidatura presidencial.
No dia 19 de novembro de 2020, o pastor Silas Malafaia postou uma foto: ele, o apóstolo César Augusto, da Igreja Apostólica Fonte da Vida, e Bolsonaro, “num bate-papo sobre o Brasil agora à tarde”. Duas pontes entre o presidente e essa parcela religiosa, eles dizem que o tucano não é sequer cogitado no pastorado.
“Nunca vi tanto o Doria quanto o [Luciano] Huck se posicionarem a favor dos valores que defendemos. Como disse, evangélicos apoiam os valores conservadores. Bolsonaro até então é o único que os tem”, afirma Augusto à reportagem.
Sobre o “mocinho engomado”, como Malafaia chama o governador, tem a dizer: “A ideia que a liderança tem é a de que ele é traíra. O cara que você não pode confiar, o verdadeiro escorpião. Traiu Alckmin, depois Bolsonaro”.
Em 2018, Doria escanteou seu padrinho político no PSDB, o ex-governador Geraldo Alckmin, e se elegeu pregando o voto BolsoDoria. Agora, faz oposição feroz ao presidente. Se muito, conseguirá “arrumar algum pastor aí pra enfeite” em 2022, diz Malafaia.
Augusto e ele já tiveram um lugar no coração para o governador. Em 2017, o carioca Malafaia disse ao jornal Folha de S.Paulo que, embora preferisse Bolsonaro, o tucano –então prefeito paulistano– faria “um bem danado ao Brasil” e daria “ótimo presidente, se não descambar”.
Já Augusto começou aquela campanha endossando Alckmin, que acabaria em quarto lugar no primeiro turno, contrariando o favoritismo inicial.
Um ano antes do pleito, o apóstolo foi recebido pelo tucano, que à época controlava o Palácio dos Bandeirantes. Ali o instigou: Deus o convocaria a concorrer à Presidência de novo (já havia perdido em 2006, para Lula). O pastor mudou de lado na reta final, quando a vitória de Bolsonaro se avizinhava.
A simpatia por Doria, então aposta de Alckmin, veio por extensão. Augusto diz que nutria a esperança de que “ele abraçaria os valores que apoiamos”, e que o tucano ganhou pontos por se acoplar ao bolsonarismo antes da eleição.
Ao assumir o governo, Doria diminuiu o contato com pastores. “O distanciamento, além da pandemia, também se configura pelo próprio cargo: políticas públicas são mais fáceis de serem implementadas no âmbito municipal do que estadual”, diz Carolini Gonçalves, presidente do Núcleo Cristão do PSDB em São Paulo.
Coordenador de Assuntos Religiosos do grupo tucano, o pastor Luciano Luna lembra que Doria foi muito próximo, quando prefeito, dos evangélicos. “Ele e Bruno [Covas, seu sucessor] conseguiram muitas conquistas para as igrejas, em alvarás e licenciamentos.”
Os humores eleitorais sempre foram fluídos na liderança evangélica. Malafaia é um bom estudo de caso.
Em 1989, apoiou Leonel Brizola e, no segundo turno, Lula, por vê-lo como “um cara que vem da classe baixa, do sofrimento do pobre”. Depois, ladeou com FHC (PSDB), voltou a exaltar o lulismo, e defendeu os tucanos José Serra e Aécio Neves.
Debates progressistas aceleraram o divórcio entre o PT e os pastores evangélicos de maior alcance nacional –como Edir Macedo e José Wellington Bezerra da Costa.
O desgaste gerado por um projeto contra o bullying homofóbico nas escolas, do Ministério da Educação sob Fernando Haddad e apelidado por conservadores de kit gay, é um ponto de inflexão.
Em 2018, um católico com fortes laços no pentecostalismo brasileiro conseguiu a proeza de reunir em torno dele um segmento tão pulverizado quanto o evangélico.
Bolsonaro, casado com uma evangélica e batizado ele próprio, de forma simbólica, nas águas do rio Jordão pelo hoje presidiário Pastor Everaldo, permanece como predileto no que podemos chamar de nata do pastorado nacional.
Se já era de se esperar o azedume com que falam de políticos da esquerda, também malquisto é Luciano Huck. O apresentador, figura mais ao centro e com entrada na direita, nunca oficializou sua intenção de se candidatar, mas a hipótese circula livremente.
Com sogros evangélicos, Huck nunca teve problemas com o segmento. Já recebeu estrelas da música gospel em seu programa de TV e tem bom trânsito em estratos mais carentes do país, onde a participação evangélica é forte.
Com a polarização dos últimos anos, contudo, sua ligação com a Globo virou vidraça –muitos pastores reproduzem o discurso de “Globo Lixo” que Bolsonaro dissemina.
Seu posicionamento em temas morais, mais progressista, também joga contra ele. Há ainda quem resgate imagens dele com Tiazinha e Feiticeira, personagens sensuais do programa que apresentava na Band nos anos 1990.
A possibilidade de a esquerda voltar a captar votos evangélicos em massa é vista com descrença, o que se estende a outros atores do campo, como Ciro Gomes (PDT) e Guilherme Boulos (PSOL). Mas o fogo maior é contra o petismo.
“Com todo o respeito, em 2018 o PT pegou uma meia dúzia de gente sem nenhuma expressão no mundo evangélico”, diz Malafaia. “Dá até vergonha os caras que apoiaram, não têm expressão.”
Fala dos pastores que se alinharam em 2018 a Haddad –que pode repetir a candidatura ano que vem, se condenações judiciais impedirem que Lula entre no páreo.
Coordenador no núcleo evangélico do PT, Luis Sabanay afirma que o partido perdeu votos sobretudo na população pobre, “onde a presença evangélica é significativa”. A “divinização da imagem de Bolsonaro” somada a artifícios “para destruir a imagem do PT” agravaram o quadro.
Pastor presbiteriano, ele questiona se líderes como Macedo e Malafaia estão a fim de papo. “Não digo que foram aliados dos governos petistas, mas eles tinham canais de diálogos abertos. Romperam porque tinham outro projeto.”
Ele prefere focar em fronts socioeconômicos para reconquistar esse eleitor. Defende “maior diálogo com as classes empobrecidas nas periferias, onde os impactos do desmonte das políticas sociais e da crise sanitária são devastadores”.
O PT explorou bem esse ângulo em 2002, quando lançou a Carta aos Evangélicos. Nela, Lula enfatizou “projetos de promoção social” e de “resgate dos marginalizados”, para depois agradecer “o amor cristão”.
O amor acabou? Talvez não na base, pondera Ana Carolina Evangelista, diretora-executiva do Instituto de Estudos da Religião.
“No primeiro turno de 2018, quando o Lula ainda era o candidato, liderava as intenções de voto no segmento evangélico, sempre seguido de perto por Bolsonaro. Não por acaso as lideranças evangélicas também demoraram para declarar seu apoio [a Bolsonaro].”
Dados da última eleição revelam que esse eleitorado elegeu representantes “a partir de pautas que se relacionavam com a forma pela qual as crises econômicas e de segurança pública afetavam suas vidas, não apenas por orientação religiosa”, afirma.
“Ao mesmo tempo, também é uma base que vem se movendo por valores cada vez mais conservadores, não apenas morais, mas na educação e na segurança pública.”
Os pastores “estarão onde estiver o poder e a chance de vitória, não importando em qual espectro”, diz Evangelista. “A história mostra isso.”