Brasil não atinge meta de vacinação infantil pela primeira vez no século
Pela primeira vez em quase 20 anos, o Brasil não atingiu a meta para nenhuma…
Pela primeira vez em quase 20 anos, o Brasil não atingiu a meta para nenhuma das principais vacinas indicadas a crianças de até um ano, apontam dados de 2019 do Programa Nacional de Imunizações. A situação ocorre em um contexto de queda nas coberturas vacinais nos últimos cinco anos, cuja redução já chega a até 27% para alguns imunizantes.
Para complicar, em meio a pandemia do novo coronavírus, equipes de saúde dizem ver atrasos na busca pela vacinação também neste ano —o que indica a possibilidade de nova queda histórica nos índices. Em geral, a meta de vacinação de bebês e crianças costuma variar entre 90% e 95%. O primeiro patamar vale para vacinas contra tuberculose e rotavírus, e o segundo para as demais.
Abaixo desse valor, há forte risco de retorno de doenças eliminadas, como já ocorreu com o sarampo, ou aumento na transmissão daquelas que até então vinham sendo controladas. Em 2019, porém, nenhuma vacina atingiu a meta entre o grupo de bebês e crianças até um ano completo —em 2018, mesmo em queda, 3 das 9 principais indicadas a esse grupo atingiram o patamar ideal .
Em outros momentos, o Brasil também chegou a ter até sete vacinas com cobertura dentro do ideal, com as demais próximas desse cenário. Os números de 2019, assim, trazem um novo alerta a um país reconhecido por ter um dos maiores e mais bem-sucedidos programas de imunização do mundo.
O maior índice de cobertura na vacinação de rotina (91,6%) foi registrado para a vacina tríplice viral, que protege contra o sarampo, o que pode estar ligado ao aumento nas informações sobre a doença (em geral, os dados de campanhas específicas pra reforço são registrados à parte).
Já o menor (69%) foi registrado para a pentavalente, que protege contra difteria, tétano e coqueluche, entre outras, e alvo de desabastecimento em boa parte do último ano.
Na prática, os dados de 2019 mostram que 8 das 9 vacinas indicadas a crianças de até um ano tiveram queda na adesão.
Em alguns casos, como as vacinas contra poliomielite e tuberculose, a cobertura vacinal já chega ao menor índice em ao menos 23 anos. Em outros, como a pentavalente, a cobertura é a menor desde que houve a incorporação completa no SUS.
A cada ano, secretarias de saúde costumam ter até o final de abril para registrar no sistema dados de vacinação do ano anterior. Neste ano, com a pandemia, o prazo máximo foi adiado para 31 de julho.
Os primeiros sinais de uma queda na vacinação começaram a ser registrados em 2015 e se agravaram em 2017, quando apenas uma vacina atingiu a meta indicada, e as demais tiveram queda.
No ano seguinte, a situação continuou grave, mas algumas vacinas tiveram leve recuperação, o que levou equipes do Ministério da Saúde a considerar a possibilidade de uma reversão na tendência.
A queda, porém, se manteve em 2019, no primeiro ano da gestão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), segundo os dados mais recentes.
Análise feita pela Folha nos dados do PNI evidenciam parte desse impacto. De 2014 a 2019, a cobertura das principais vacinas para bebês teve queda de 7% (pneumocócica) a 27% (pentavalente).
Apesar dos primeiros alertas terem ocorrido há vários anos, ainda não há uma explicação exata sobre o que leva à queda nas coberturas. Pesquisas que estavam sendo aplicadas desde o último ano tiveram que ser adiadas na pandemia.
Especialistas, porém, apontam fatores como a falsa sensação de segurança, mudança no mercado de trabalho, problemas na organização da rede e até o próprio sucesso do programa, com aumento no número de vacinas ofertadas, o que exige ir mais aos postos.
Outro fator que pode ter pesado, sobretudo em 2019, foram casos de desabastecimento, como houve com a pentavalente, após problemas na compra no mercado internacional, e com a BCG, aplicada em maternidades
“Não é que a população não quer, é que faltou”, diz Isabella Ballalai, da Sbim (Sociedade Brasileira de Imunizações), que aponta mais motivos para a BCG. “Alguns municípios passaram a evitar abrir um frasco [que tem dez doses] à toa para otimizar. Mas se não faz a vacinação na maternidade, a cobertura cai. E se chega no posto e ouve que é pra voltar dali a dois dias, não volta.”
A situação também pode ter interferido em outras vacinas com intervalos próximos, afirma José Cássio de Moraes, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de SP, que cita ainda o impacto do ajuste fiscal na saúde, o aumento na informalidade e dificuldades na notificação por municípios.
Apontado como fator para uma queda na vacinação também no restante do mundo, movimentos antivacina ainda são vistos como fracos no Brasil.
Declarações recentes do presidente Jair Bolsonaro de que ninguém é obrigado a se vacinar contra Covid-19, no entanto, têm levantado polêmica por seu potencial antivacinação.
“É uma frase muito usada por movimentos antivacina. E é inadequada, porque a proteção da vacina não é só para uma pessoa, mas para a sociedade. Não precisamos ter vacinado 100% da população para eliminar a pólio”, diz Moraes.
Se os dados dos últimos anos geram alerta, a situação tende a se agravar neste ano. Equipes de saúde avaliam que o temor do coronavírus pode ter levado famílias a evitar os postos.
Em abril, a vacinação de rotina também chegou a ser suspensa temporariamente em alguns estados em meio à campanha contra a gripe.
Na tentativa de retomar os índices, o Ministério da Saúde já prepara uma campanha de multivacinação em outubro. Para especialistas, no entanto, a adesão à vacinação deve ser estimulada já sobretudo em estados que planejam retomar as aulas nas próximas semanas.
“Não dá para a criança voltar para a escola sem estar vacinada. Esses números deixam a gente vulnerável a um surto de pólio”, afirma Ballalai. “A situação é catastrófica.”
Questionado pela Folha, o Ministério da Saúde diz que tem ampliado campanhas de conscientização e atribui a queda também em 2019 à redução que já vinha sendo registrada nos últimos anos.
Também cita fatores, “tais como a falsa sensação de segurança causada pela diminuição ou ausência de doenças imunopreveníveis; o desconhecimento da importância da vacinação por parte da população mais jovem e as falsas notícias veiculadas especialmente nas redes sociais sobre o malefício que as vacinas podem provocar à saúde”.
A pasta frisa ainda que, mesmo com a pandemia, a vacinação segue normalmente, “respeitando as diretrizes e orientações de segurança para evitar o risco de transmissão da Covid-19”.