ATLAS DA VIOLÊNCIA

Brasil não sabe a causa de 17 mil mortes violentas em 2019

Óbitos violentos por causa indeterminada disparam e sugerem subnotificação de homicídios, segundo Atlas da Violência

Mortes violentas caem 6% no Brasil em 2021, aponta anuário (Foto: Agência Brasil)

O Brasil não sabe a causa de 17 mil de suas mortes violentas em 2019. Elas podem ter sido provocadas por agressões, assassinatos, acidentes ou suicídios, mas entram nas estatísticas como indefinidas e provavelmente puxam os registros de homicídios do país para baixo.

A conclusão é do Atlas da Violência 2021, que foi lançado nesta terça (31). O estudo calculou que os óbitos classificados como “morte violenta por causa indeterminada” (MVCI) sofreram um salto de 12.310 para 16.648 entre os anos de 2018 e 2019, um aumento de 35%.

O crescimento vai na contramão dos homicídios, que caíram 21% no mesmo período, de 57.956 para 45.503 —esse é o menor número de assassinatos no Brasil desde 1995, início da série histórica, mas o problema nas notificações indica que ele está subestimado.

A pesquisa anual reúne dados do Ministério da Saúde, principalmente do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Foi feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), ligado ao governo do Espírito Santo.

Segundo o levantamento, a qualidade dessas informações vinha melhorando há mais de 15 anos, mas sofreu uma piora significativa em 2018 e 2019. Com isso, a parcela de óbitos sem definição sobre o total de mortes por causas externas dobrou de 6% para 12% em dois anos, pior patamar desde 1979.

“Nos países desenvolvidos isso é feito com muito cuidado e a porcentagem é inferior a 1%. Primeiro por respeito às famílias, que têm o direito de saber como a pessoa morreu, e segundo porque é fundamental para fazer um diagnóstico e evitar novas mortes. O nosso termômetro está quebrado”, afirma Daniel Cerqueira, diretor do IJSN e um dos coordenadores do estudo.

A piora aconteceu, diz ele, pela falta de revisão adequada dos estados e, principalmente, do governo federal. Todo ano, um trabalho intenso é feito junto às unidades da federação para qualificar os dados, tentando saber junto às polícias e famílias quais as circunstâncias das mortes.

“Os números de 2019 geralmente seriam divulgados em maio de 2021, mas foram divulgados em janeiro, com muita antecipação e sem os devidos critérios. Ainda mais num ano de pandemia, em que o sistema de saúde ficou totalmente voltado para a Covid, se esperaria um atraso”, afirma Cerqueira.

Seis estados têm apresentado falhas mais gritantes: São Paulo, Rio de Janeiro (em ambos, as taxas de mortes indefinidas chegam a superar as de homicídios), Ceará, Bahia, Minas Gerais e Pernambuco. Sem a atuação do ministério, eles “ficam mais à vontade” para não conferir os dados e acabam se beneficiando com menos assassinatos contabilizados, segundo o pesquisador.

Num outro estudo, ele estimou que aproximadamente 74% das mortes por causas indeterminadas registradas no Brasil entre 1996 e 2010 eram, na verdade, homicídios ocultos. Das quase 17 mil notificadas em 2019, por exemplo, 1.991 foram provocadas por armas de fogo.

Apesar do problema nos números, a tendência de queda dos assassinatos naquele ano foi confirmada por outras pesquisas, como o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que reúne ocorrências policiais. O último Anuário já apontou, porém, um aumento em 2020, mesmo durante a pandemia.

A diminuição das mortes violentas no Brasil a longo prazo é creditada por pesquisadores ao envelhecimento populacional (uma vez que a maioria das vítimas é jovem), a uma série de políticas públicas de segurança em alguns estados e ao Estatuto do Desarmamento, a partir de 2003.

A curto prazo, envolve também uma espécie de armistício entre facções criminosas que travaram uma guerra pelo tráfico internacional de drogas em 2016 e 2017, causando na época uma explosão de homicídios no Norte e Nordeste, seguida de uma queda acentuada.

Agora, o Atlas faz um alerta para a alta recente dos óbitos. Entre as causas, cita o recrudescimento da violência no campo, o aumento das mortes por policiais sem mecanismos de controle efetivos e a ampliação do acesso a armas de fogo pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

“Na segurança existe um embate parecido com o da pandemia, entre negacionismo e ciência. Na academia internacional e nacional há um consenso: mais armas, mais crimes. Mas isso tem sido desprezado por uma política irresponsável que vai trazer mais tragédias por décadas, porque essas novas armas vão durar 20, 30 anos”, diz Cerqueira.

A pesquisa mostra que a redução da violência letal na última década se concentrou mais entre a população não negra do que entre a negra. No primeiro grupo, a taxa por 100 mil habitantes caiu 30% entre 2009 e 2019, já no segundo a diminuição foi de apenas 15%. Com isso, negros são 76% das vítimas e têm 2,6 mais chances de serem mortos.

Outro dado que indica que a desigualdade racial aumentou é que, em 2009, a taxa de mortalidade de mulheres pretas ou pardas era 49% maior que a de mulheres brancas, indígenas ou amarelas. Onze anos depois, passou a ser 66% superior.

O perfil das vítimas continua sendo jovem, apesar de essa porcentagem estar caindo ano a ano. Dos mais de 600 mil homicídios acumulados de 2009 até 2019, 53% das vítimas tinham entre 15 e 29 anos.

O Atlas traz ainda dados sobre violências contra a população LGBTQIA+, mais uma vez chamando a atenção para a falta de informações nessa frente. As denúncias ao Disque 100, serviço do governo federal, sofreram uma redução brusca no último ano da análise.

Desde 2015 o número de ligações se mantinha entre 1.600 e 2.000 anuais. Em 2019, caiu à metade, para 833. Por outro lado, os números do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) não indicaram uma queda desse tipo de notificação na prática, no sistema de saúde.

“Os motivos para que as pessoas não recorram ao serviço para fazer denúncias podem ser inúmeros, desde a falta de confiança no equipamento gerido pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, até a falta de prioridade política e financeira dada ao tema pelo órgão, ou a eventual redução da divulgação do canal”, especula o relatório.

Foi a primeira vez ainda que o estudo analisou violências contra dois outros grupos minoritários. Apontou um aumento nos assassinatos de indígenas em uma década, de 112 para 186, e contabilizou uma média de ao menos uma agressão contra a população com deficiência por hora no país.

Os dados, porém, vêm sempre com uma ressalva quanto à sua qualidade. “Nosso objetivo é tensionar as autoridades para que produzam informações. Ainda vivemos um apagão estatístico. É preciso zelar por esse patrimônio nacional que temos que é o SIM [Sistema de Informações sobre Mortalidade]”, ressalta Daniel Cerqueira.