Censo Escolar

Brasil perde 30 mil matrículas de creche pública em um ano

Diminuição de vagas registradas no Censo Escolar reverte tendência de crescimento nos últimos seis anos; crise no setor privado e pandemia da Covid-19 agravam quadro

Medidas estão na proposta que cria o Auxílio Brasil, programa social defendido pelo governo e substituto do Bolsa Família (Foto: Agência Brasil/Arquivo)

Pela primeira vez nos últimos seis anos, o Brasil registrou queda no número de matrículas em creches públicas. Num cenário em que o país necessita criar cerca de 1,5 milhão de vagas até 2024, apenas para garantir o mínimo exigido pelo Plano Nacional de Educação (PNE), foram 30 mil crianças a menos nessa etapa escolar em 2020 em relação a 2019 (veja os números ao lado). Os dados são do Censo Escolar, colhidos em março — ou seja, ainda antes da pandemia. Especialistas acreditam que o número será ainda maior quando forem incluídos o segundo e terceiro trimestres deste ano.

— A demanda por creche é muito alta. É muito preocupante detectar a diminuição do número de matrículas— alerta Karina Fasson, educadora da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, voltada à infância.

De acordo com o Índice de Necessidade de Creche (INC), métrica criada pela instituição, mais de 5 milhões de crianças de 0 a 3 anos precisam de vaga em creche por serem de famílias pobres, com apenas um responsável ou porque a pessoa cuidadora é economicamente ativa, ou teria potencial para ser. Isso significa que pelo menos 1,2 milhão dessas famílias precisam, mas não encontram hoje vagas na creche.

A educação infantil é responsabilidade das prefeituras. Segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2020, publicação do Todos Pela Educação com dados de 2019, 35,7% das crianças até 3 anos estão matriculadas em creche. São 3,8 milhões de matrículas, nas redes pública e privada.

De acordo com o PNE, em vigor desde 2014, é preciso atender, até 2024, no mínimo, 50% das crianças de até 3 anos. Para isso, teríamos de ter 5,3 milhões de crianças matriculadas — portanto, o país precisaria abrir mais 1,5 milhão de vagas.

As creches privadas têm hoje 1,4 milhão de matriculados, segundo o Censo Escolar de 2019. Mas o setor foi um dos mais abalados pela pandemia. Segundo a presidente da Associação Brasileira de Educação Infantil (Asbrei), Celia Moreno Maia, enquanto as públicas diminuem de tamanho de forma inédita nos últimos anos, as particulares já perderam, em média, metade dos alunos este ano.

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— Os (novos) prefeitos enfrentarão a pressão por mais vagas nas creches públicas por conta do fechamento das privadas em um cenário em que terão menos verba — diz Gabriel Corrêa, gerente de Políticas Educacionais do Todos Pela Educação.

Luiz Miguel Garcia, presidente da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Unime), acrescenta que o número do Censo Escolar pode ter subestimado a dimensão do problema, pois, neste ano, o prazo para coleta das informações foi mais reduzido.

Qualidade mínima

A falta de vaga na creche afeta mães em todo o país. Suellen Dias, de 21 anos, tenta matricular Enzo Miguel Dias Ribeiro, de 3, desde 2019. Ele vai passar da idade da etapa pedagógica sem poder cursá-la. E o irmão mais novo dele, Vicente, de 1 ano e três meses, já aguarda na fila.

— Se conseguisse as vagas ia ajudar muito no desenvolvimento deles e também na minha vida profissional — diz a mãe de três crianças, que abriu um mercado no quintal de casa, em Santa Cruz do Sul (RS), para trabalhar e cuidar dos filhos ao mesmo tempo.

A creche tem papel decisivo no desenvolvimento intelectual das crianças. O economista Daniel Santos, da USP, frisa que, com um padrão mínimo de qualidade, a etapa contribui para o desenvolvimento de sinapses, relações afetivas e o repertório da criança. Ele enfatiza, no entanto, que o aumento de vagas deve ser acompanhado por foco na qualidade.

— Ainda registramos maus-tratos nas creches com frequência inaceitável. Há relato de abusos verbais e de deixar criança olhando para a parede. Há creches onde se liga a TV e pronto. Assim a criança perde a oportunidade de ser estimulada e de expandir seu potencial. A creche precisa conversar com a criança — diz.

O professor da USP frisa ainda que a fatia do Fundeb, principal fundo de financiamento da educação básica do país, destinada à educação infantil é fundamental para se abrir mais vagas em unidades públicas. Ele espera que, no atual processo de regulamentação do fundo, o governo federal seja impedido de usar essa verba em programas de transferência de renda, tema em debate no momento no Congresso.

— Espero que isso não aconteça. Mas vagas em creches é um dos poucos temas consensuais no país — diz.