ONU

Brasil rejeita investigação sobre Amazônia e direitos humanos

A reação do governo também ocorre dias depois de o chanceler Ernesto Araújo aplaudir uma investigação da mesma entidade sobre a crise política e a repressão na Venezuelana

O Brasil se recusa a aceitar que o Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) realize um debate sobre a crise na Amazônia e se opõe a qualquer tipo de investigação internacional contra o país. Essas propostas tinham sido feitas na semana passada pela relatoria das Nações Unidas e reveladas com exclusividade pela coluna. A reação do governo também ocorre dias depois de o chanceler Ernesto Araújo aplaudir uma investigação da mesma entidade sobre a crise política e a repressão na Venezuelana.

Num duro discurso nesta segunda-feira, o Itamaraty criticou a entidade e se negou a aceitar qualquer ato nesse sentido. “O Brasil não vai se submeter à tutela politizada, disfarçada de um mandato técnico”, declarou a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, em uma crítica explícita aos mecanismos das Nações Unidas.

O discurso da diplomata foi uma resposta ao fato de que, pela primeira vez em seu período democrático, o Brasil foi alvo de uma recomendação oficial para que o governo seja objeto de uma investigação internacional por suas políticas ambientais e de direitos humanos.

O ataque do governo brasileiro à ONU ocorre às vésperas da abertura do Assembleia Geral das Nações Unidas por parte do presidente Jair Bolsonaro, nesta terça-feira, e amplia o mal-estar entre o país e a instituição internacional.

A iniciativa partiu do relator especial da ONU, Baskut Tunkat, responsável pelos temas de gestão ambiental e resíduos tóxicos. Sua proposta é de que o Conselho de Direitos Humanos aprove a abertura de uma investigação. Para que isso ocorra, porém, governos teriam de apresentar um projeto de resolução e aprovar a proposta por um voto da maioria.

Para experientes negociadores, tal cenário hoje na ONU seria improvável. Mas o pedido reflete uma crise sem precedentes entre o governo brasileiro e os enviados independentes da organização O relator realizou uma missão ao Brasil no final de 2019 e, ao preparar seu informe, constatou sérias violações nas obrigações ambientais e de direitos humanos do país, inclusive no contexto da pandemia da covid-19.

Tunkat concluiu seu mandato em meados do ano e o informe foi apresentado pelo novo relator, Marcos Orellana.

Covid-19 e Amazônia

O documento também acena com a possibilidade de que o Brasil tenha violado obrigações legais por sua resposta à pandemia ao adotar uma postura negacionista e desmontar sistemas de proteção aos grupos mais vulneráveis.

Segundo Orellana, sem um controle, a situação no Brasil não será apenas uma calamidade ao país, mas uma ameaça global. O relator, portanto, voltou a recomendar que Conselho abra um inquérito e que uma sessão especial sobre proteção à Amazônia seja realizada.

Entre embaixadores estrangeiros consultados pela coluna, muitos acreditam ser improvável que a investigação siga adiante, mas destacam que, pela primeira vez desde o final da ditadura militar, uma proposta concreta é submetida para que se abra uma investigação contra o Brasil, com um constrangimento diplomático sem precedentes. Hoje, apenas países como Síria, Coreia do Norte, Mianmar, Venezuela ou Burundi contam com inquéritos específicos por parte da ONU.

Se fosse aberta, a investigação colocaria o Brasil de forma permanente na agenda de direitos humanos das Nações Unidas.

O informe, porém, indica que haveria legitimidade para um processo similar sobre o Brasil. “Apesar dos avanços positivos nas últimas décadas, o Brasil está em um estado de profundo retrocesso em relação aos princípios, leis e normas de direitos humanos, em violação ao direito internacional”, diz. “Para apoiar suas ações e inações, o governo continua a negar verdades científicas incontroversas e introduz sem justificativas incertezas e argumentos míticos”, alerta.

Governo brasileiro rechaça questionamentos

A resposta do governo brasileiro reforçou um padrão do atual governo, de insistir na defesa de sua soberania contra qualquer questionamento ou fiscalização internacional. “No espírito de cooperação, aceitamos o relator e permitiu que ele tivesse contato com as autoridades”, disse a embaixadora. Segundo ela, “apesar da informação que demos em diferentes temas, o relator optou por critica não construtiva”.

Para a diplomata, que chegou já a ser elogiada por Bolsonaro por sua defesa do governo, declarou que as recomendações do relator sobre um inquérito ou a realização de uma sessão especial “claramente ultrapassa seu mandato”.

“Essas recomendações não vão no espirito de colaboração e dialogo que sempre guiou a relação do Brasil com os mandatos”, disse.

Ao discursar, ela destacou medidas para o controle de barragens e garantiu que o país tem “regulações fortes” para a proteção do meio ambiente. De acordo com a embaixadora, o relator “subestima os esforços do Brasil para dar uma resposta ao desmatamento, adotando regulamentamos ambientais rigorosas”.

Diplomata cita 20 mil inspeções e US$ 75 milhões em multas ambientais

Segundo ela, a operação Brasil Verde Número 2 é prova do “compromisso do governo” para punir crimes ambientais e combater incêndios. O governo indicou que, até agosto, multas ambientais chegaram a US$ 75 milhões e 20 mil inspeções foram feitas na região de floresta. O Itamaraty ainda disse que o Brasil “sabe das ameaças contra ativistas de direitos humanos”.

O governo aproveitou seu tempo para dizer que os dados do relatório eram incompletos e que autoridades estabeleceram leis que impedirão novas barragens como a de Brumadinho, além de novas regras sobre construções nas proximidades desses locais.

Ela ainda criticou que o documento não reconheça os “enormes esforços institucionais” em Mariana (MG) e que a ONU estaria publicando dados “desatualizados” sobre os pesticidas no Brasil. Mas disse que 70% dos ingredientes ativos usados no Brasil são autorizados na UE.

A embaixadora, porém, não conseguiu terminar seu discurso diante do fim do tempo dado pelo Conselho para a resposta do governo. A diplomata teve seu microfone cortado antes de passar a dar explicações sobre algumas das acusações.

Ao responder, o relator deixou claro que as recomendações não se limitam às questões de investigações. Mas para que o governo crie órgãos que garantam o controle ambiental, e não o predomínio de uma lógica econômica.

Entidades criticam resposta do governo

O discurso do Brasil foi alvo de críticas por parte de entidades da sociedade civil. Naiara Bittencourt, assessora jurídica da Terra de Direitos e integrante da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, disse que “não é possível afirmar, como fez o governo brasileiro, que temos uma forte legislação de proteção ambiental”.

“Esperava-se do governo brasileiro que trouxesse dados e elementos concretos que contrapusesse os dados de envenenamento da população por agrotóxicos. Desqualificar o documento, acusando-o de político ou questionando o seu inegável caráter técnico, é uma maneira equivocada que apenas demonstra a falta de compromisso do governo com direitos humanos das populações afetadas, especialmente agricultores familiares, trabalhadores rurais, indígenas e quilombolas”, completa Naiara.

A entidade Conectas afirmou que apoia a ideia de uma investigação internacional contra o Brasil e denunciou o desmonte das estruturas de direitos humanos.

Falando em nome de mais de cem entidades que fazem parte da Campanha Permanente contra Agrotóxicos e da entidade Terra de Direitos, Nívia Regina da Silva também criticou a postura do governo diante da crise ambiental.

Já a entidade Franciscans International criticou a situação das barragens, enquanto a Justiça Global alertou que “futuro tóxico já chegou”.

Outras entidades, como a Right Livelihood Award, ainda falaram em “genocídio” por parte do governo contra indígenas e alertaram que a existência de certas tribos estão “sob ameaça”.