FUNCIONALISMO

Brasil tem 65% dos servidores públicos com estabilidade; Suécia, 1%

Regras brasileiras protegem ampla variedade de carreiras de servidores, enquanto cargos considerados de Estado são apenas 11,2% do total

(Folhapress) Com menos funcionários públicos em relação à sua população e às pessoas ocupadas que muitos países, o Brasil é um dos que mais gastam com servidores como proporção do PIB. É também o que mais concede plena estabilidade a funcionários do Estado, sem que sejam submetidos a avaliações de desempenho.

Cerca de 70% dos servidores do governo federal são chamados estatutários, regidos pelo Estatuto do Servidor Público Federal (lei 8.112/90), após aprovação em concurso. Estados e municípios seguiram a mesma lógica nas contratações, levando a que 65% dos 12,1 milhões de funcionários públicos tenham estabilidade.

Os percentuais foram calculados com base na Rais (Relação Anual de Informações Sociais), do Ministério do Trabalho e Emprego.

Alemanha, Reino Unido e Suécia têm menos servidores em regimes semelhantes ao dos estáveis (estatutários) brasileiros. Nesses países, grande parte do funcionalismo é regida por normas mais parecidas às do setor privado, mas com algumas vantagens e segurança no cargo. A plena estabilidade é garantida apenas a carreiras específicas, como do Judiciário.

No Brasil, a estabilidade protege desde juízes e policiais federais (carreiras consideradas típicas do Estado) a professores, enfermeiros e pessoal administrativo, posições amplamente encontradas no setor privado.

Para Luiz Carlos Bresser-Pereira, ministro da Administração Federal e Reforma do Estado entre 1995 e 1998 e responsável por mudanças na área no governo FHC, a estabilidade deveria existir para carreiras com “poder de Estado”, não para cargos encontrados na iniciativa privada. “Mas o corporativismo venceu quando tentamos mudar isso”, diz.

No governo federal, três quartos dos servidores (a maioria com estabilidade) atuam nas áreas social (como professores e médicos) e administrativa (secretárias, por exemplo), segundo o trabalho “Hierarquia valorativa e distribuição de capitais na burocracia brasileira”, do pesquisador Otávio Ventura, com base no Sistema Integrado de Administração de Pessoal.

Nas áreas jurídica, policial e de regulação, auditoria e controle, sem equivalentes no setor privado e típicas do setor público (com “poder de Estado”), são 11,2%.

O arranjo na França se aproxima um pouco mais do brasileiro, mas com número menor de servidores estáveis e com menos vantagens. Na maioria dos países é possível dispensar pessoal, por exemplo, quando há necessidade de ajuste orçamentário ou extinção de determinado serviço prestado —o que não ocorre no Brasil.

Além da estabilidade, servidores geralmente estão vinculados a regimes próprios de Previdência, diferente do INSS, e que oferecem condições mais favoráveis. Há também promoção automática na carreira, independentemente do desempenho, e licenças remuneradas após determinado tempo de serviço, entre outras vantagens.

Para Humberto Falcão, professor da Fundação Dom Cabral especializado em gestão pública, o Brasil é “um ponto fora da curva” no que se refere à estabilidade plena para os servidores federais e dos estados e municípios sob esse regime.

“Estamos atrasados no debate. Deveria haver regras diferenciadas para determinadas funções, com garantias resguardadas, mas não para todas. Não faz mais sentido, por exemplo, professores de universidades federais terem esse tipo de vantagem”, diz.

Falcão destaca que o funcionalismo nem sequer é avaliado, como previa regulamentação após a reforma administrativa tocada por Bresser-Pereira em 1998. “O projeto está ‘dormindo’ no Congresso há 26 anos.”

Na prática, mesmo que legalmente previsto, é muito difícil demitir um servidor estável que tenha cometido falta grave ou não desempenhe sua função adequadamente. Segundo o estudo “A Reforma do RH do Governo Federal”, de Ana Carla Abrão, Arminio Fraga e Carlos Ari Sundfeld, em 2015 apenas 0,1% dos servidores públicos foi dispensado.

Para Gabriela Lotta, pesquisadora de administração pública e governo da FGV, a discussão sobre o fim da estabilidade dos servidores no Brasil precisa ser “amadurecida”. Ela argumenta que, no caso de estados e municípios, ainda há muita pressão política e o risco de demissões de funcionários não alinhados a governantes.

Felix Lopez, coordenador do Atlas do Estado Brasileiro, afirma que, no governo federal, há uma institucionalidade maior. Assim, a estabilidade plena para algumas funções poderia passar por alguma revisão. “No caso de estados e municípios, seria um passo atrás.”

Lotta destaca que, mesmo no governo federal, muitos cargos devem ser resguardados. Ela cita o caso de auditores fiscais que barraram pressões de Jair Bolsonaro para reaver joias sauditas no aeroporto de Guarulhos; ou de agentes do Ibama que mantiveram fiscalizações à revelia da política frouxa para o meio ambiente do ex-presidente.

Daniel Duque, gerente de inteligência técnica do Centro de Liderança Pública, diz que não há razão para o Brasil conceder estabilidade para a maioria de seus servidores. Isso impede, inclusive, o remanejamento de pessoas dentro do Estado.

“Com o envelhecimento da população, precisaremos cada vez mais de médicos e enfermeiros, e menos de professores”, diz. “Ninguém está falando de um Estado inchado, mas de algo sem flexibilidade e que entrega menos do que países que gastam quase o mesmo.”

Para Bruno Carazza, autor de “O País dos Privilégios”, livro em que faz uma radiografia do setor público, mesmo que o Brasil não realize uma ampla reforma administrativa para diminuir o número de estáveis, “há um grande campo para avançar”.

“É preciso racionalizar as várias carreiras, mapear servidores que podem eventualmente migrar para outras áreas afins e avaliar o impacto da tecnologia na prestação de serviços. Sem isso, seguiremos contratando sem conhecer a real necessidade”, diz.

Levantamento realizado pela Folha mostrou que o Executivo federal tem ao menos 10 mil servidores permanentes em cargos totalmente inusitados, como açougueiro, vaqueiro e vendedor de artesanato. O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos afirma ter planos para reduzir as 250 tabelas de remuneração e os mais de 300 agrupamentos de carreiras para um número mais racional, ainda não determinado.

Nos últimos anos, sobretudo nos estados e municípios, contudo, o poder público vem procurando novas formas de contratação, levando à redução do total de cargos com estabilidade (estatutários) e ao aumento de funções sob regime temporário ou comissionado —movimento que tem reduzido gradativamente o gasto geral com os estáveis.

A despesa total com o funcionalismo no Brasil equivale a 8,9% do PIB, segundo o Fundo Monetário Internacional. Entre nove países selecionados, fica atrás da África do Sul (12,6%) e da Suécia (10,4%). Os latino-americanos Chile (6,8%), Colômbia (5,6%) e México (3,8%) gastam menos.

O número de servidores no Brasil em relação ao total de ocupados (12,2%) e à população (5,7%) fica abaixo de muitos países, assim como o rendimento médio mensal calculado pela Paridade do Poder de Compra, que leva em conta o quanto de bens e serviços uma moeda compra em termos internacionais. Esses dados, assim como o total e tipos de vínculos, foram reunidos por Lopez e Lotta.

Para o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga, contudo, outra forma de medir o custo do funcionalismo é compará-lo ao tamanho do gasto primário do governo, que exclui despesas com juros da dívida.

“Nessa proporção, os números são enormes para um país de renda média como o Brasil”, afirma. Em outro estudo seu, “Estado, Desigualdade e Crescimento no Brasil”, a despesa com servidores no Brasil equivale a 40% do gasto primário, acima de todos os países pesquisados, exceto a África do Sul, segundo dados do FMI.

A massa salarial total paga ao funcionalismo em relação à receita também é elevada no Brasil na comparação com outras regiões do mundo, segundo o Banco Mundial —mas abaixo da média latino-americana.

O Brasil também apresenta uma série de distorções e privilégios salariais no serviço público. Os maiores rendimentos estão concentrados nos Poderes Judiciário e Legislativo federais, seguidos pelos seus equivalentes nos estados. Os menores salários estão na ponta do serviço público, que atende diretamente a população no dia a dia.

Nos municípios, a grande maioria dos servidores recebe menos de R$ 5.000 ao mês; nos estados, R$ 7.500. Na máquina dos servidores públicos do Executivo federal, os salários variam de R$ 5.000 a mais de R$ 15 mil.