Busca de empresas privadas atrás de vacinas contra Covid perde força
Lei de março regulou a compra, mas dificuldade de aquisição junto a fornecedores travou a ideia
A aplicação de vacinas contra a Covid-19 pelo setor privado perdeu força no Brasil, pelo menos por ora. O principal obstáculo para as empresas e associações que vislumbravam a ideia foi o posicionamento das farmacêuticas produtoras de só fornecer os imunizantes a governos. Também houve críticas às concessões previstas em lei.
A lei 14.125, de 10 de março deste ano, regulou a compra de vacinas pelo setor privado e diz que pessoas jurídicas podem comprar os imunizantes com autorização temporária para uso emergencial “desde que sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI)“.
Segundo a lei, após a imunização de grupos prioritários as empresa poderiam “adquirir, distribuir e administrar vacinas, desde que pelo menos 50% das doses sejam doadas ao SUS e as demais sejam utilizadas de forma gratuita”.
Principal entidade na defesa da vacinação privada, a Abcvac (Associação Brasileira das Clínicas de Vacina) não concordava com a necessidade de doação. O órgão tecia um acordo para importação de 5 milhões de doses da vacina Covaxin, da farmacêutica Bharat Biotech, a partir de uma intermediação da Precisa Medicamentos. Hoje, a aquisição da Covaxin pelo governo brasileiro é um dos principais focos de investigação da CPI da Covid.
A reportagem tentou, durante a última semana, entrevistas com representantes da Abcvac, mas a associação preferiu não se manifestar sobre se ainda busca fornecer vacinas para clínicas privadas.
A entidade apenas enviou uma nota, elaborada no fim de março, sobre as denúncias contra o governo Bolsonaro, a Precisa Medicamentos e a Bharat Biotech. No texto, a associação afirma que “repudia veementemente toda e qualquer ação ilícita em qualquer esfera de negociação” e diz que, além da Covaxin, a Abcvac tem buscado alternativas desde o início da pandemia, mas que a Bharat Biotech foi a única farmacêutica a “oferecer parte da produção para o mercado privado brasileiro, tratando-se de uma venda adicional e que não iria interferir em qualquer negociação com setores públicos de nenhum país”.
A Coalizão Indústria, que conta com diversos setores produtivos, como de aço, automotivo, construção civil, entre outros, era outra entidade que visava a vacinação privada. À Folha a assessoria da associação diz que a iniciativa não avançou e não tem perspectiva de retomada.
A CNI (Confederação Nacional da Indústria) disse em nota à reportagem que avaliou a aquisição de vacinas para “contribuir com o poder público na execução do Plano Nacional de Imunização”, mas que a ideia não foi para frente. A confederação diz também que disponibilizou as estruturas da Sesi (Serviço Social da Indústria) para apoio na aplicação de vacinas.
A 99 é outra que estudava como vacinar funcionários. Agora, porém, a empresa diz que “não procurou ou negociou com nenhuma empresa para adquirir vacinas” e que contribuiu com o PNI por meio da doação de R$ 3 milhões divididos entre o Instituto Butantan e a Fiocruz.
A P&G, que também se mostrava interessada na imunização privada, foi procurada, mas disse em nota que preferia não se manifestar por causa da proximidade da divulgação dos resultados financeiros da empresa.
Entre os consultados pela Folha, somente o Sindicato dos Comerciários de São Paulo disse manter em pé o plano da vacinação privada. A entidade conseguiu, no início de maio, uma liminar na Justiça autorizando a compra de imunizantes, sem a necessidade de entrega das doses ao SUS (Sistema Único de Saúde). A decisão, proferida em maio, também autoriza a vacinação de familiares dos funcionários.
A ideia, segundo Ricardo Patah, presidente da UGT e do Sindicato dos Comerciários, é imunizar os associados da cidade de São Paulo, o que representaria cerca de 500 mil pessoas. Um grandes setores interessados é o de supermercados, que não parou na pandemia, diz ele. Patah afirma ainda que o sindicato só busca acordos, e caberia aos empresários alocar verbas para a compra de vacinas.
O presidente do sindicato afirma, porém, que a associação enfrentou dificuldades para avançar as negociações com as farmacêuticas. Segundo ele, a única que deu prosseguimento ao assunto é a União Química, que busca a produção e importação da vacina russa Sputnik V, do Instituto Gamaleia.
Tanto a Covaxin como a Sputnik V receberam apenas aval da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para a importação de doses das vacinas contra a Covid, e ainda de forma condicional e com restrições.
A Folha procurou a União Química. Luciano Reimberg, diretor de Outsourcing da empresa afirmou que, no primeiro trimestre de 2021 empresas transnacionais, bancos e associações de taxistas, entre outros, buscaram a farmacêutica. “Na medida em que firmamos posição de que seríamos fornecedores com prioridade ao PNI, essas consultas naturalmente se encerraram”, disse o representante, em nota.
Na última semana, São Paulo iniciou a vacinação de pessoas da casa dos 30 anos, mas, segundo Patah, mesmo o avanço para idades menores não desincentiva a busca do sindicato, que tem média de 30 anos entre seus associados. A ideia é que, mesmo que não possam usar os acordos agora, eles sirvam para a revacinação no futuro próximo.
“Essa questão da Covid não é deste ano, é uma questão que veio para ficar”, diz Patah. “Nós vamos ter que vacinar igual à vacina da gripe. Vamos buscar uma possibilidade de estar sempre na frente com os nossos representados.”
É possível, portanto, que a aquisição das vacinas contra a Covid por empresas avance no ano que vem diante da necessidade de uma nova dose de reforço, que poderá ser anual ou não, dependendo da circulação do coronavírus.
A reportagem também entrou em contato com as farmacêuticas que produzem vacinas autorizadas para uso no Brasil e perguntou sobre as negociações atuais com o setor privado e possibilidades de acordos futuros.
A Pfizer afirmou que, por causa do acordo de entrega de doses firmado com o Brasil, não tem condições de negociar o fornecimento de vacinas para estados, prefeituras e empresas. A farmacêutica afirma que não há um prazo para que isso mude e, consequentemente, passem a ser possíveis acordos com o setor privado.
A AstraZeneca também disse que todas as doses da vacina estão atualmente atreladas a acordos com governos e organizações multilaterais pelo mundo, como a Covax Facility, da OMS (Organização Mundial da Saúde). “A AstraZeneca atualmente não disponibiliza a vacina por meio do mercado privado ou trabalha com qualquer intermediário no Brasil”, diz a empresa em nota.
A Folha entrou em contato com a Janssen, braço farmacêutico da Johnson & Johnson que produz uma vacina de dose única contra a Covid, mas não recebeu resposta até a publicação deste texto.
Também não obteve resposta da Sinovac, que desenvolveu a Coronavac, a vacina produzida no Brasil pelo Instituto Butantan. O instituto é ligado ao governo paulista e tem como foco o fornecimento de imunizantes para atender o Ministério da Saúde.
A Folha procurou o Ministério da Saúde, mas não teve retorno até a publicação da reportagem.
A Anvisa também foi procurada para comentar a ação do Sindicato dos Comerciários, da qual é parte. A agência afirmou que “está acompanhando a ação e adotando as medidas judiciais processualmente cabíveis”.