LEI DE COTAS RACIAIS

Candidato negro acusa universidade de impedi-lo de assumir cargo de professor

O sonho de integrar o corpo docente de uma universidade pública se esfacelou para Ilzver…

O sonho de integrar o corpo docente de uma universidade pública se esfacelou para Ilzver de Matos, de 40 anos. Em 2020, o doutor em Direito pela PUC-Rio passou em segundo lugar geral e em primeiro lugar por cotas raciais em concurso público para o cargo de professor adjunto na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS), instituição em que concluiu a graduação. O doutor foi convocado em março de 2021, mas a posse foi derrubada no dia 28 de abril, em decisão do Conselho do Departamento de Direito, segundo ele, ferindo não apenas o edital como a Lei de Cotas Raciais para concursos públicos de 2014.

Nesta terça, o Ministério Público Federal (MPF) de Sergipe instaurou uma investigação para apurar a suposta prática de discriminação racial na UFS.

Formado em 2003, Ilzver dedicou toda a sua carreira acadêmica aos estudos de religiões de matriz africana e questões raciais, como a política de cotas, rendendo-lhe, em 2018, a honraria do Prêmio Direitos Humanos, do então Ministério dos Direitos Humanos. Ele também é presidente da Comissão da Verdade da Escravidão Negra da Organização dos Advogados do Brasil de Sergipe (OAB-SE).

O concurso abriu seis vagas para professores, mas apenas outros dois doutores passaram com Ilzver. Pela Lei de Cotas Raciais e pelo edital de convocação, de 2019, ele deveria ter sido convocado, dado que consta a reserva de 20% das vagas para candidatos negros.

O doutor em Direito foi chamado no dia 24 de março, após a aposentadoria de um professor do departamento. Entretanto, no dia 5 de abril, o professor de Ciências Contábeis Uziel Santana, da UFS, enviou requerimento ao setor de Recursos Humanos da universidade para manifestar interesse na remoção interna — quando um docente da própria instituição pleiteia uma vaga disponível em outro departamento.

Diante disso, o RH abriu inquérito para verificar se Ilzver poderia ocupar o cargo ou se seria realizada a remoção. Em 15 de abril, a Procuradoria da UFS tomou decisão favorável ao candidato, afirmando que a remoção foi autorizada meses antes da abertura do edital, de outubro de 2019, e nenhum candidato pleiteou a vaga, que tem como pré-requisito a obtenção de título de doutor em Direito. No dia seguinte, a professora Jussara Jacintho foi sorteada relatora do caso.

No dia 22, em reunião do Conselho do Departamento de Direito, a relatora argumentou em favor de Ilzver. Porém, segundo ele, antes da votação do parecer, Uziel apresentou uma manifestação oral criticando o voto da relatora e o despacho da Procuradoria, e integrantes do Conselho afirmaram que faltava documentação do candidato Ilzver e da Procuradoria.

Integrantes do Conselho voltaram a se reunir no dia 28 de abril, após novo posicinamento da Procuradoria favorável à manutenção da nomeação de Ilzver. Por 11 votos a 5, ele não pôde ocupar o cargo, e será aberto novo edital de remoção interna. A votação ocorreu após apresentação de parecer divergente feito pelo Representante Técnico Administrativo dentro do Conselho, favorável à abertura do edital interno.

Entretanto, segundo Ilzver, a decisão vai de encontro com o parecer da relatora, do novo documento da Procuradoria da UFS, e contra o Edital do concurso e a Lei de Cotas Raciais.]

Para Ilzver de Matos, a decisão tomada em conselho é uma ilegalidade, para atingir objetivos pessoais:

— Para mim, claramente se trata de uma tentativa de se alcançar fins políticos-ideológicos na universidade pública. Esse perfil que eu represento, negro, do candomblé, de esquerda, dos direitos humanos, é alvo desse grupo político (de direita) que, atualmente, tenta ocupar todos os espaços, inclusive nas universidades — afirma.

Procurado, o professor Uziel Santana não quis se manifestar sobre o caso, mas sua assessoria afirmou à reportagem do GLOBO que se trata de uma questão prevista na legislação e respaldada pelo Departamento de Direito da UFS.

Já o departamento informou que a deliberação do conselho foi tomada a partir de orientação recebida da Procuradoria Jurídica da UFS e que o processo tramita internamente. Eles afirmaram ter “compromisso com o respeito à legalidade e à transparência e contra qualquer intolerância racial ou religiosa”.

Democratização do ambiente universitário

O pesquisador reforça a importância da UFS para assegurar o cumprimento da política de cotas no serviço público para democratizar o ambiente universitário. Pesquisa publicada na Revista Sociedade e Estado em maio de 2019 aponta que, na UFS, das 174 vagas para professores ofertadas entre junho de 2014 e janeiro de 2018, apenas duas foram reservadas para acadêmicos negros, descritas em edital.

— Há muito tempo, a universidade deixou de ser um espaço da elite no Nordeste do país. Temos, hoje, negros, indígenas, quilombolas que são mestres, doutores e professores, e podem trazer uma contribuição imensa para a ciência e para o ensino no nosso país. A UFS está colocando um empecilho a essa ascensão — reforça o especialista em religiões de matriz africana.

A defesa de Ilzver afirmou que vai recorrer administrativamente dentro da UFS, e deve entrar com o primeiro recurso até dia 18 de maio, duas semanas após a data em que o Conselho confirmou aos advogados a publicação da ata da reunião do dia 28 de abril.Caso os recursos se esgotem na universidade, afirmam que vão judicializar o caso.

Segundo nota do MPF, foram enviados na segunda-feira ofícios ao Reitor, ao Chefe do Departamento de Direito e ao Conselho Departamental de Direito da UFS para solicitar esclarecimentos. A universidade tem até 5 dias para apresentar resposta ao órgão.

Após o caso, entidades do Direito mostraram solidariedade ao professor e afirmam que pretendem auxiliar a defesa durante o processo. Entre elas, a OAB/SE e a Associação Nacional de Advogados Negros (ANAN).

O presidente da OAB-SE, Inácio Krauss, afirmou que o órgão se colocou à disposição para auxiliar o doutor Ilzver de Matos.

De acordo com ele, na última segunda-feira, houve reunião com a Comissão de Estudos de Direito Constitucional da OAB para analisar a legislação sobre o preenchimento da vaga. Caso se confirme o preconceito de raça e religião, o presidente garantiu que “com certeza” a OAB vai estar à frente do caso para que sejam tomadas as devidas providências.

A sub-diretora jurídica da ANAN, Mylena de Matos, afirmou que os documentos apresentados por Ilzver apontam que se trata de racismo estrutural e institucional:

— É uma forma de burlar a política de cotas e de tentar tampar isso falando que essa vaga teria primeiro que ser destinada a uma pessoa que pediu remoção para, depois, fosse aberta para o Dr. Ilzver — pontua.