Cirurgias de readequação sexual desabam na pandemia
Em 2019, ano anterior à onda de Covid-19, o país realizou 224 cirurgias de redesignação sexual pelo SUS. No ano passado, até outubro, foram só 31
O assistente administrativo Diogo Almeida, 25, iniciou o processo para realizar a cirurgia de redesignação sexual pelo SUS (Sistema Único de Saúde) em 2013. Embora tenha passado pelas etapas obrigatórias para este tipo de procedimento, incluindo cirurgias complementares, ele não tem ideia de quando conseguirá realizar o procedimento de transgenitalização.
Se a situação já era complicada antes da pandemia, as cirurgias do tipo pelo SUS (Sistema Único de Saúde), por serem eletivas, quase pararam no país no último ano. Além disso, tratamentos foram paralisados e ao menos um serviço voltado ao público transgênero foi interrompido.
Em 2019, ano anterior à onda de Covid-19, o país realizou 224 cirurgias de redesignação sexual pelo SUS. No ano passado, até outubro, foram só 31, segundo dados do Ministério da Saúde -queda de 86%.
Na conta, estão incluídos procedimentos diversos, que vão da retirada das mamas às mudanças nas genitais masculina e feminina.
Para se ter uma ideia, o último ano em que foram realizados tão poucos procedimentos foi em 2014, quando foram feitas apenas 24 cirurgias (veja quadro abaixo).
Para chegar à etapa final, as pessoas passam por um processo longo. O acompanhamento médico e psicológico acontece por ao menos dois anos, com objetivo de concluir que o paciente tem certeza de sua vontade. A cirurgia pode ser feita a partir dos 18 anos, segundo resolução do Conselho Federal de Medicina, em um cenário que faltam hospitais e médicos capacitados para o procedimento.
Segundo informações da Defensoria Pública de São Paulo, uma pessoa pode ficar até 18 anos na fila antes de ser atendida. No estado, há 585 homens trans e 648 mulheres trans que aguardam na fila -no caso delas, é mais alarmante a situação, uma vez que o número de mulheres inclui só os dados entre 2009 e 2013.
“A gente entende que existe um gargalo cirúrgico muito grande. Na pandemia, teve contexto de agravamento. Primeiro teve um processo de paralisação de consultas, grupos de psicoterapia tiveram que se reorganizar, entrar na realidade do trabalho remoto. Cirurgias são eletivas, então foram adiadas”, diz o defensor público Vinicius Conceição Silva, coordenador do Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e Igualdade Racial da Defensoria.
A presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, Keila Simpson Sousa, afirma que os serviços para a população trans já não eram vistos como prioridade antes da pandemia. Com ela, piorou uma situação.
“O que afeta a pessoa que entra na fila com 18 anos de idade, mas que vai conseguir fazer redesignação já quase com 30 anos? Imagina a situação psicológica durante esse processo”, diz.
“Muitas pessoas por não conseguirem esperar atentam contra sua própria vida ou querem fazer automutilação para não permanecerem mais nesse sofrimento psiquíco”, diz.
Na pandemia, devido à necessidade de distanciamento social, parte da rede de apoio que transgêneros tinham para dar suporte uns aos outros foi afetada. “Antes da pandemia, a gente tinha encontros mensais, de cerca de 60 pessoas [que fazem a transição]”, diz Diogo, acrescentando que as reuniões acabaram.
Segundo ele, a falta de previsibilidade sobre quando será a cirurgia é uma das maiores preocupações da população trans que aguarda na fila.
Diogo começou o processo de transição ainda quando estava no ensino médio. Desde então, fez a cirurgia de retirada das mamas e retirada do útero, cumprindo todos os requisitos. Mas não sabe quando será feita a etapa final, do processo de transgenitalização (do órgão sexual feminino para o masculino).
“Você não consegue programar sua vida, pois não sabe se vão te chamar daqui três meses, três anos ou daqui a 30 anos”, diz.
Além de mais complexa e difícil de encontrar profissionais capacitados, a cirurgia de transformação de genitais femininas em masculinas pode exigir mais de uma etapa, o que requer planejamento.
“Às vezes pode se estar falando de um ano fazendo diversas cirurgias, preciso de um preparo financeiro, preciso saber se vou precisar realizar um procedimento pré-cirurgico”, disse. Entre os gastos previstos, por exemplo, está uma depilação a laser necessária em cirurgias de redesignação sexual -ela costumava ser feita no estado, mas a única máquina usada está quebrada no momento.
A Defensoria Pública de São Paulo afirma que há falta de transparência na fila das cirurgias e entrou com uma ação cobrando a centralização do processo que possibilite a criação de uma fila única, além de um órgão específico para executar e planejar as políticas relacionadas a este público.
Diretor do ambulatório estadual que atende a população transgênero desde 2009, Ricardo Martins afirma que o governo já está trabalhando na criação de um sistema que centralize a fila.
Ele afirma, porém, que há profissionais que prestam esclarecimentos à população trans sobre o estágio de seu processo.
Martins admite a paralisação das cirurgias no início da pandemia, mas afirmou que o processo foi retomado ao longo do ano. No entanto, a situação pode voltar a piorar.
“Na medida em que pandemia se recrudesce, aumenta o número de mortos, aumenta o número de enfermarias de Covid-19, pode parar tudo de novo”, diz.
Segundo o diretor, o ambulatório estadual atende cerca de 2.000 pessoas, entre aquelas que buscam as cirurgias e que não buscam. Em comum, se trata de uma população com alta vulnerabilidade.
“Prestamos atenção em saúde interdisciplinar para as pessoas trans. Para aquelas que desejam fazer cirurgia e para aquelas que não desejam e não necessitam cirurgia, mas têm questões específicas com relação em relação questão corporal e de saúde mental”, diz.
Segundo ele, apesar das dificuldades da pandemia, as pessoas continuaram participando do programa.
“Aquelas que puderem migrar os atendimentos para atendimentos a distância, a gente negociou à distância e manteve. Aquelas pessoas que não podem, que são muitas, que sofrem exclusão digital, a gente atende normalmente [de forma presencial]”, diz.
Em meio à pandemia, porém, a população trans perdeu ao menos um espaço de apoio na capital paulista.
Tratava-se de um programa do SUS, dentro do Hospital Municipal Santa Catarina, administrado pela Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein. O ambulatório fazia o acompanhamento psicológico, psiquiátrico, médico, de exames e hormonização da população trans.
Segundo o Einstein, o projeto feito por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS foi “concluído ao final do prazo previsto”. “O tratamento dos pacientes terá continuidade em outros serviços da capital paulista. O Hospital Vila Santa Catarina e a Secretaria Municipal de Saúde de SP estão contatando os participantes para entregar a carta de encaminhamento aos novos locais de atendimento”, diz a nota.