Colégio tradicional de SP tem maior número de alunos trans
“Você vai encontrá-los em maior número só a partir da segunda aula”, avisa o diretor…
“Você vai encontrá-los em maior número só a partir da segunda aula”, avisa o diretor Tiago Augusto Pereira.
É noite de uma segunda-feira de novembro. O cansaço é visível no rosto de quem trabalhou o dia inteiro e agora sobe as escadas do prédio de 116 anos tombado pelo patrimônio histórico paulista. Estão entre os 1.581 alunos que terão de lidar com as provas finais do ano na Escola Estadual Caetano de Campos, na região central de São Paulo.
O sinal apita às 19h45: vai começar a segunda aula. O diretor tem razão: é a partir desse horário que os corredores de piso colorido por figuras geométricas são tomados por alunos de muitos sotaques.
São haitianos, congoleses, bolivianos, venezuelanos e até franceses. “Parece um mapa-múndi”, brinca a vice-diretora Ana Lúcia Nicolau.
Mas não é só a presença de estrangeiros que chama a atenção. Por aqueles corredores também circulam o maior número de alunas travestis e de mulheres e homens trans da rede pública estadual de ensino da cidade de São Paulo.
Neste ano, 40 pessoas trans se matricularam no colégio. Em 2018, eram 43. Em toda a rede pública paulista são 755 alunos transgênero em 5.400 escolas, número 48% maior em relação ao ano anterior.
O levantamento da secretaria da Educação gerida por Rossieli Soares só leva em consideração os estudantes com o nome social na matrícula, direito dado à pessoa trans de usar o nome adequado ao gênero com o qual se identifica.
Apesar do aumento expressivo, o uso do nome social nas escolas da rede paulista só passou a valer em 2014.
A travesti Cláudia Menezes, 66, conclui neste ano o ensino médio na Caetano de Campos. “Glamour hoje é ter um diploma”, afirma. Perguntada sobre a maior dificuldade no retorno às aulas, Menezes é rápida na resposta: “Matemática foi muito difícil de entender”.
Além do convívio com colegas e professores, Menezes diz que vai sentir falta de andar pelas escadas, seu lugar predileto do colégio. “Toda vedete adora descer uma escada”, diz, e ri. Nos anos 1970, ela fez o mesmo percurso da atriz Rogéria (1943-2017) e foi parar nos palcos de Paris.
Menezes vive com uma bolsa de R$ 1.047,90 do Transcidadania, programa social criado em 2015 pelo ex-prefeito Fernando Haddad (PT) e mantido nas gestões tucanas de João Doria e Bruno Covas, que busca elevar o nível escolar da população trans em situação de vulnerabilidade social.
Ela se espelha na trajetória de Raquel de Souza, 35, ex-integrante do Transcidadania e da Caetano de Campos, que hoje está na faculdade. “Concluir o primeiro ano de serviço social é muito para uma mulher trans que ficou 11 anos afastada da escola e na prostituição”, diz Souza.
Cláudia e Raquel são crias da EJA (Educação de Jovens e Adultos), modalidade oferecida à noite para alunos que não terminaram a formação na época ideal –na Caetano de Campos, são 334 estudantes.
Mas o que faz a Caetano tão procurada pela população T? Primeiro, a localização. O prédio está entre as ruas da Consolação e Augusta, no centro, com ampla oferta de transporte. Uma segunda unidade do colégio, fundado em 1846, funciona na Aclimação.
Em segundo lugar: a propaganda boca a boca. A Caetano foi uma das primeiras a fazer parte da rede escolar parceira do Transcidadania, que hoje tem ao menos 69 escolas. “Só consegue uma bolsa quem já tem matrícula. As escolas mais demandadas passam por capacitação para recepcionar melhor o aluno trans”, diz a coordenadora Abigaill Santos.
Laurence Tempesta, 52, leciona física e diz que a escola só virou referência na área da diversidade porque soube tratar com seriedade os casos de preconceito. “Um grupo de alunos refugiados muçulmanos procurou a direção para mudar de sala. Eles não queriam estudar com as alunas trans. A gente disse: mudem vocês de escola. Aqui a gente está acolhendo.”
Também deixaram a escola uma professora que queria expulsar os demônios das travestis e outro que prometia curar os alunos trans na porrada.
Luana Molina, especialista em educação sexual com doutorado pela Unesp, vê por trás da tensão sentida pelos professores falhas na formação –um problema nacional, diz.
“Falta no currículo docente conhecimento sobre diversidade para desconstrução de tabus.” Mas comecemos pelo básico: o professor sabe o que é um aluno trans?, pergunta a especialista.
Diversidade é o que a professora de português e inglês Maria Fátima Ferreira busca ensinar entre uma regra gramatical e uma expressão da língua inglesa. Ela criou uma prova que busca medir os impactos da convivência entre os alunos cis e trans.
No questionário, os alunos avaliam o trabalho dela, o da escola e o próprio desempenho deles ao longo do ano. As respostas honestas somam pontos na nota final. “Só com diálogo que as pontes de solidariedade são construídas. O aluno precisa se sentir realmente integrado”, afirma.
Daniel Queiroz, 18, aprendeu a “ver a outra margem do rio” lidando com as colegas trans. “A gente adquire uma experiência que não está nos livros”, diz ele.
Nesse ambiente, Ariel Rocha, 20, e Gabriel Sampaio, 21, não demoraram muito para revelar à turma que estavam apaixonados. O casal trans diz que não teria coragem de demonstrar carinho em outro lugar. “Essa escola parece uma ilha, mas que bom seria se as ilhas desaparecessem e as pessoas pudessem ser quem são sem medo”, reflete Sampaio.
Nesta terça (17) Cláudia, Gabriel e Ariel pegarão o mesmo papel que um dia receberam na Caetano de Campos a escritora Cecília Meireles (1901-1964), o poeta Mário de Andrade (1893-1945) e a futura assistente social Raquel: o diploma.