Com enredos que vão de censura a óleo no Nordeste e água suja no Rio, blocos criticam governos
Blocos de rua planejam mais um ano de folia politizada neste Carnaval de 2020
A arte sob ataque dá lugar à arte sob atabaques, numa ode à ciência e num desfiles de críticas ao terraplanismo, à Amazônia em chamas, ao óleo no mar do Nordeste e à água suja nas torneiras cariocas. Mas a letra da marchinha promete: “não há merda que dure pra sempre”.
Blocos de rua planejam mais um ano de folia politizada neste Carnaval de 2020, em que São Paulo terá recorde de blocos, após ultrapassar o Rio em número de cordões no ano passado.
No cortejo paulistano do Casa Comigo, “as artes vão rolar”. Raphael Guedes, um dos fundadores do bloco, enumera episódios do que chama de desmonte cultural, como a suspensão de editais de filmes com temática LGBT a pedido do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e veto a peças de teatro.
O contra-ataque? O cordão vai selecionar projetos artísticos para se apresentar durante seu desfile. O edital prevê financiamento de R$ 5.000 para cada grupo escolhido.
A Confraria do Pasmado, que sai pelas ruas de Pinheiros, na zona oeste da capital, lançou um manifesto. Chamou de escabroso o vídeo publicado pelo então secretário especial de Cultura do governo federal, Roberto Alvim, com discurso e estética que copiam Joseph Goebbels, ministro nazista. Ele acabou exonerado após o episódio.
Mas no cordão, segue, “não há silêncio possível diante do fascismo”. Por isso o tema deste 2020: “O anarcotropicalismo no Carnaval da distopia”.
“Pasmem! Diante de terra plana, globalismo, ameaça comunista, volta do AI-5, da censura, e de todas as loucuras distópicas proferidas por quem está no poder, o Carnaval sente-se obrigado a ser o ‘lado sensato’ da história neste ano”, afirma o bloco.
Outro cordão tradicional da festa paulistana, o Acadêmicos do Baixo Augusta desfila com o grito de “Viva Resistência” e também bate na tecla da cultura ameaçada.
O grupo que já fez cortejo “A cidade é nossa” e “Que país é esse?”, diz que este ano certamente será de um Carnaval mais politizado ainda.
Tirar onda em cima dos poderosos não é exclusividade deste ano, mas uma tradição que vem desde os primeiros tempos da República. O ex- presidente Lula (PT) já protagonizou marchinha chamada “Corre que a polícia vem aí” e Michel Temer (MDB) foi alvo da “Presidento Transilvânia”, que se mudou para “uma capital onde o terreno é fértil para o mal”.
Já no ano passado, a festa foi marcada pelo episódio do “golden shower”. Bolsonaro publicou no Twitter um vídeo que mostra um homem urinando na cabeça de outro rapaz, enquanto ele dançava sobre um ponto de táxi após introduzir o dedo no próprio ânus. Na publicação, o presidente diz que “é isto que tem virado muitos blocos de rua no Carnaval brasileiro”.
Eleito com uma pauta assumidamente conservadora, Bolsonaro mantém agenda que parece ser oposta ao espírito transgressor e satírico do Carnaval.
Para Thiago França, fundador da Charanga do França, “até transar virou ato político”. É uma alusão a política de abstinência proposta pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.
O bloco, que sai pelas ruas da região central, vai passar com um estandarte “Charanga anti-fascista”. Outra novidade é o lançamento de um funk em homenagem ao DJ Rennan da Penha, famoso pelo Baile da Gaiola, no Rio, que ficou preso sete meses após ser condenado a seis anos e oito meses por associação para o tráfico de drogas.
Tem também cordão que desistiu da bandeira política este ano por medo de represália. O Bloco 279, que sai na Lapa, zona oeste, viu posicionamentos como “Fora Temer” e “Ele Não” afastar componentes e foliões, ao som de vaias.
“Após uma publicação sobre a Marielle [Franco], o mestre de bateria quis sair do bloco. Vimos que em cordões menores, em bairros mais conservadores, é melhor não falar de política”, afirma o fundador, Alex Altieri. O bloco reúne cerca de 600 pessoas no Carnaval e optou por homenagear Raul Seixas.
Outro bloco de bairro, o Turma do Funil, que desfila pela Vila Mariana, na zona sul, resolveu falar do Nordeste, que, fazem questão de sublinhar no enredo, “faz parte do Brasil”. É uma referência ao início do governo Bolsonaro, quando o presidente ameaçou destinar menos verbas para estados da região.
E não esqueçam do óleo no mar, diz Renata Mendes, fundadora do bloco. “No nosso abadá ilustramos o mar nordestino cheio de barris de petróleo, um desastre que até agora não teve resposta à altura.”
O Rio de Janeiro não fica atrás. O Suvaco do Cristo, no Jardim Botânico, tem o enredo “Águas de Fevereiro” –crítica à grave crise de abastecimento na cidade, onde há quase um mês moradores veem sair da torneira uma água turva, com gosto de tijolo.
A música vai assim: “Nova onda chegou no mar, é petróleo pra bronzear. E a cerveja vem lá de BH. Servem lixo industrial para os peixes do litoral. O verão foi da lata, hoje é da garrafa -de água mineral”.
O samba também fala do desmatamento: “O Rio queima, como queima a Amazônia, numa fornalha de quarenta e cinco graus. Durante o dia, é uma Austrália fumegante, quando é de noite, vira tudo um Bacurau”.
No Quizomba, bloco do Circo Voador e que desfila pela Lapa, a água barrenta também não vai passar em branco. Com uma paródia da marchinha “Cachaça não é água”, um dos trechos brinca: “Se a Cedae tratasse a nossa água, a água não matava não. Quem bebe água hoje é chique, para o povo é água de valão”.
E continua: “Se você pensa que vive sem água, sem água não se vive não. Sai lixo na torneira lá de casa. O cheiro é de cortar o coração. Cuidar da água para ficar saudável. Porque sem água, sem cerveja, irmão”.
Já o Meu bem, Volto Já sai em defesa da ciência e da pesquisa com o enredo “Contra essa covardia, saúde, ciência e alegria: 120 anos da Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz]”.
O Carnaval, defende Jorge Sapia, um dos fundadores, “é alegria, mas é, fundamentalmente, compromisso com a cidade e a cidadania”.
Há 25 anos em Ipanema, o Que Merda é Essa? aquece as baterias para cantar “não há merda que dure pra sempre”.
O bloco vai escolher o samba no dia 1º de fevereiro, mas não quer fugir da política. No desenho do abadá tem uma urna e um Cristo Redentor que exclama: ufa!
“Não podemos citar nomes, somos apartidários. Mas o que temos hoje? Ano de eleição municipal e tentativas deliberadas de esvaziar o Carnaval do Rio”, diz Floriano Torres, um dos fundadores, em alusão ao prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), que está num embate com os cordões que desfilam na zona sul carioca e é frequentemente acusado de enfraquecer a festa por ser evangélico.
Também vai ter espaço para pautas feministas com o cortejo do Mulheres Rodadas, que já parafraseou Tieta, de Caetano Veloso, para: “eta, eta, eta, eta, o Eduardo Cunha quer controlar minha boceta”, quando o ex-presidente da Câmara dos Deputados quis colocar em votação na Casa a proibição do aborto.
Este ano, no entanto, elas se juntam ao feminismo latino-americano e prometem iniciar o desfile com a performance “Um violador em seu caminho”, que reúne mulheres com os olhos vendados cantando “E a culpa não era minha, nem onde estava, nem como vestia” (sic).
A coreografia contra casos de estupro e feminicídios surgida nas manifestações chilenas viralizou e foi repetidas em atos de vários países, como Argentina, Colômbia, México, EUA, Espanha, França e Turquia.