Lei Aldir Blanc

Começa pagamento de R$ 797 mi de auxílio a artistas, mas há risco de fraude

Sete meses depois de decretada a calamidade pública em razão do coronavírus, começa a ser…

Sete meses depois de decretada a calamidade pública em razão do coronavírus, começa a ser pago um auxílio emergencial para artistas. Serão R$ 797 milhões, mas há dúvidas sobre sua utilidade. A verba pode ser pouco usada e ainda há riscos de fraudes porque basta se declarar artista para tentar ganhar o benefício, sem comprovar que exerce a atividade.

Além disso, os critérios de seleção são quase idênticos aos do auxílio emergencial federal e não é possível acumular os dois. Por isso a maioria das pessoas que poderia ganhar a ajuda já deve ter recebido. Vai sobrar pouca gente para o novo benefício e o dinheiro pode acabar sendo usado para outros fins.

Levantamento do UOL aponta os seguintes números:

– R$ 797 milhões foram destinados ao auxílio dos artistas

– Isso daria para pagar cinco parcelas de R$ 600 para mais de 265 mil pessoas

– Gestores estaduais admitem que o número de beneficiários deve ser bem menor
Diferenças entre auxílio emergencial e renda dos artistas

O pagamento aos artistas é determinado pela Lei Aldir Blanc. A principal diferença entre o auxílio emergencial federal (pago desde abril) e a renda para artistas é que este só pode ser distribuído para trabalhadores do setor cultural. Porém, basta uma autodeclaração para ser aprovado nesse quesito, o que pode facilitar fraudes.

Além disso, a lei traz um conceito amplo da atividade cultural, incluindo festas populares e “centros de cultura alimentar”. Assim, há margem para justificar o pagamento para vendedores ambulantes em eventos de rua ou para pescadores em comunidades ribeirinhas, por exemplo.

Fiscalização e privilégios

O Tribunal de Contas da União manifestou preocupação com a fiscalização dos recursos, principalmente porque eles chegam a estados e municípios em período eleitoral. O dinheiro é federal, mas será distribuído pelos estados. Parlamentares críticos à Lei Aldir Blanc veem o programa como privilégio de uma categoria profissional que tem influência política.

Para a relatora do projeto, a renda emergencial de artistas atenderá pessoas isoladas que não tiveram acesso ao auxílio emergencial e cumprirá o papel de socorrer um dos setores mais prejudicados pela pandemia.

Benefícios têm critérios quase idênticos

A Lei Aldir Blanc foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em 29 de junho, mas o decreto que detalhou o benefício só foi publicado, quase dois meses depois, em 18 de agosto.

O texto previa três parcelas de R$ 600, que seriam prorrogadas automaticamente junto com o auxílio emergencial e pagas retroativamente desde 1º de julho. Assim, a interpretação da maioria dos estados é que a renda deve ter cinco parcelas no total.

Os critérios de renda para ser aprovado são idênticos aos do auxílio emergencial federal:

renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo (R$ 522,50) ou renda familiar mensal total de até três salários mínimos (R$ 3.135)
rendimentos tributáveis deaté R$ 28.559,70 em 2018

Assim como o auxílio emergencial, o auxílio do setor cultural também exclui quem:

  • tem emprego formal
  • recebe aposentadoria ou benefício previdenciário (como auxílio-doença)
  • recebe seguro-desemprego
  • recebe benefício assistencial (exceto Bolsa Família)

Atuação no setor nos últimos 24 meses

Para ter direito à renda emergencial da Lei Aldir Blanc, é necessário ter “atuado social ou profissionalmente nas áreas artística e cultural” nos 24 meses anteriores à publicação da lei —ou seja, de maio de 2018 a maio de 2020.

Cada estado tem seu próprio cronograma para a renda emergencial do setor cultural. Alguns ainda têm inscrições abertas, enquanto outros estão em fase de análise dos cadastros.

Em São Paulo, as inscrições foram prorrogadas até 4 de novembro e podem ser feitas neste link. Sergipe foi o primeiro estado a iniciar os pagamentos, em 7 de outubro.

Critérios foram um acordo com o governo, diz relatora

O projeto inicial da lei foi proposto em março por 24 deputados da oposição (PT, Rede, PSOL, PSB, PDT). O texto era menos rigoroso nos critérios e previa o pagamento de um salário mínimo.

Durante a tramitação, a relatora Jandira Feghali (PCdoB/RJ) apresentou uma nova versão, aprovada na Câmara e mantida pelo Senado.

De acordo com a deputada, o governo avisou que só apoiaria o projeto se o auxílio da cultura tivesse os mesmos critérios do auxílio emergencial federal.

Menos beneficiários que o esperado

Segundo Ursula Vidal, presidente do Fórum Nacional dos Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, o programa de renda emergencial deve ter melhor sucesso no Norte e Nordeste, regiões em que há mais pessoas sem acesso a internet e que não conseguiram se cadastrar para o auxílio federal.

Em Sergipe, primeiro estado a começar os pagamentos, foram aprovados apenas 208 cadastros na primeira análise —menos de 5% do total possível. O estado tem verba aprovada de R$ 14,6 milhões, o suficiente para pagar cinco parcelas de R$ 600 para mais de 4.800 pessoas.

Ursula Vidal afirma que a renda emergencial da Aldir Blanc vai acabar com menos beneficiários do que o previsto nos planos de ação apresentados pelos estados. “Vamos ter uma base [de beneficiários] muito menor por conta do auxílio emergencial ter alcançado uma base muito extensa.”

Autodeclaração é suficiente

Há duas maneiras de ser considerado trabalhador do setor cultural para pedir a renda emergencial: apresentar documentos que comprovem a atividade nos últimos dois anos, ou simplesmente assinar um documento em que a pessoa se declara profissional da área.

O formulário de autodeclaração adverte que informações falsas podem configurar o crime de falsidade ideológica, com penas de 1 a 5 anos e multa.

A Lei Aldir Blanc traz uma lista de espaços e atividades culturais, incluindo:

  • centros de tradição regionais
  • espaços culturais em comunidades indígenas
  • comunidades quilombola
  • espaços de povos e comunidades tradicionais
  • festas populares, inclusive o carnaval e o São João
  • empresas de diversão e produção de espetáculos
  • feiras de arte e de artesanato
  • espaços e centros de cultura alimentar de base comunitária, agroecológica e de culturas originárias, tradicionais e populares

Para a relatora da lei, Jandira Feghali, não há problema em destinar recursos da renda emergencial do setor artístico a trabalhadores de comunidades tradicionais em atividades como pesca e culinária. Ursula Vidal concorda. “São práticas relacionadas ao universo simbólico e imagético do patrimônio cultural imaterial.”

Risco de fraudes

Na opinião de Marcelo Marchesini, especialista em Administração Pública e professor do Insper, o critério de autodeclaração não é um problema. “Num momento de emergência como esse, não é recomendável que se coloquem critérios muito burocráticos para acessar benefícios.”

Ele afirma que a melhor medida para coibir desvios é manter canais de denúncia e apurar com rapidez os possíveis casos de fraude.

O TCU tem um processo aberto para acompanhar as transferências, além de uma consulta realizada pela Frente Nacional de Prefeitos.

“Há uma preocupação nossa com o momento em que esses recursos estão chegando, em meio a eleições municipais”, afirmou o secretário de controle externo do trabalho do TCU, Márcio Albuquerque, em um evento virtual para esclarecer dúvidas de gestores locais sobre a Lei Aldir Blanc. Segundo o secretário, o órgão cobrará relatórios de gestão para certificar que o dinheiro foi destinado corretamente.

Dinheiro pode ser remanejado para outros programas

Por causa dos critérios de renda e da exclusão de quem já recebe o auxílio federal, estados admitem usar parte dos recursos da renda emergencial em outros programas previstos na Lei Aldir Blanc.

Na opinião de Jandira Feghali, essa solução não configura desvio de função do dinheiro público, pois os recursos continuam beneficiando o setor cultural.

O deputado Paulo Ganime (Novo/RJ), discorda. “No final das contas, o dinheiro não vai colocar comida na mesa das pessoas, mas vai para projetos que não são tão relevantes num momento de crise.”

Partido critica “privilégio” da classe artística

O Novo foi o único partido a orientar voto contrário na Câmara ao projeto da deputada Jandira Feghali. No Senado, o texto foi aprovado sem voto contrário.

“Por que o artista tem direito, mas a manicure, o vendedor e o porteiro não têm?”, questiona Paulo Ganime, líder do partido na Câmara. Para ele, os artistas foram privilegiados porque têm influência política, mas essa não é a melhor forma de se fazer política pública.

O Congresso chegou a aprovar outros dois auxílios emergenciais para setores específicos: agricultores familiares e atletas. Ambos foram vetados pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Auxílio é dos estados, mas dinheiro é federal

A Lei Aldir Blanc prevê um repasse total de R$ 3 bilhões, sendo metade para os municípios e a outra metade para estados e Distrito Federal. A verba deve ser usada em três frentes:

  1. auxílio emergencial para trabalhadores da cultura
  2. subsídio e manutenção de pessoas jurídicas do setor que tiveram a atividade interrompida por medidas de isolamento social
  3. editais, prêmios e compra de bens e serviços para fomentar a cultura

Os estados e o DF terão, no total, R$ 1,5 bilhão para os três itens. Os municípios dividirão outro R$ 1,5 bilhão, mas podem usar apenas nos itens 2 e 3, pois não estão autorizados a ter um programa de auxílio emergencial próprio.

Cada ente precisa apresentar um plano de ação com detalhes de como irá usar os recursos. A verba só é liberada depois que o plano é aprovado pelo Ministério do Turismo.

Segundo dados da Plataforma +Brasil, do R$ 1,5 bilhão destinado a estados e Distrito Federal, R$ 796,7 milhões irão para o auxílio dos trabalhadores da cultura. Veja a divisão no quadro abaixo.

Lei Aldir Blanc

Avaliação dos cadastros ficou com os estados

O decreto que detalhou regras da Lei Aldir Blanc dizia inicialmente que os cadastros teriam de ser homologados pelo Ministério do Turismo. Um mês depois, o governo federal mudou de ideia e alterou o texto, passando a responsabilidade para os estados e o DF.

O governo federal disponibilizou uma ferramenta da Dataprev para cruzamento dos dados. A empresa pública é a responsável por analisar cadastros do auxílio emergencial federal a partir de informações enviadas por vários órgãos.