‘Comia tripas e lesma’: brasileiros vítimas de tráfico humano na Ásia conseguem voltar para casa após 4 meses; entenda o caso
Nathalia Munhoz e Patrick Lopes foram atraídos por falsa oportunidade de emprego na Tailândia. Acabaram sequestrados por milícia e submetidos a condição análoga à escravidão
Nesta quarta-feira (16), o caso teve um desfecho. Nathalia e Patrick desembarcaram no Brasil e voltaram para casa. Mas o caminho percorrido até um final feliz foi longo. “Estamos exaustos”, definiu o pai, Cristiano de Lima Munhoz, à reportagem. Ele e a mãe, Vanessa Aparecida Munhoz contaram ao GLOBO sobre a tensão vivida nos últimos 4 meses, do cárcere até a libertação. Antes, Cristiano falou sobre o alívio de voltar a ter as filhas nos braços.
– Vivemos uma mistura de sentimentos durante a expectativa da chegada deles. Momentos de felicidade, nervosismo, angústia, choro. Ao vê-los e tocá-los, tudo isso foi desmoronando. O alívio de saber que eles estavam salvos de um país que se encontra em guerra civil, violento, um ambiente inóspito. Tanta coisa negativa, com o Natal chegando e minha filha do meio prestes a ter um bebê… imagina a minha situação – relatou, emocionado. – Quando desembarcaram, foi uma emoção só. Sensação de alívio, paz e gratidão a Deus. Eu ganhei um presente de Deus!
Ele conta que, durante todo o período em que a filha e o amigo estiveram sob o poder dos criminosos, as famílias viveram momentos de angústia e desespero.
– Foram noites sem dormir direito, sem comer… passamos por grandes dificuldades e tivemos que montar um quebra-cabeça. Enfrentamos muitos jogos de empurra, informações que não se encontravam… Não tivemos apoio de autoridades locais, até que as coisas foram clareando… Enviei informações ao Itamaraty e comecei a fazer contato em Yangon (cidade de Myanmar). A carga de estresse foi enorme. E, quando estávamos nos preparando para ir ao Itamaraty, em Brasília, recebemos as informações da libertação – relembra.
O ‘pesadelo’
A família de Nathalia conta que tudo começou quando ela viu um anúncio da vaga de emprego do outro lado do mundo no Instagram e se interessou ao ver que se enquadrava dentro do perfil. O homem, responsável pela divulgação, se apresentava como André.
–Não sei ao certo se o rapaz ela já conhecia ou não, mas ela me pediu opinião e eu fui contrário, não havia gostado da idéia, por algumas razões lógicas. Uma delas, por causa das filhas dela. Outra, por questões da minha saúde. Minha esposa é muito ausente por conta de sua profissão, de técnica em enfermagem. Mas, por fim, ela aceitou a proposta e nos comunicou, dizendo que precisava trabalhar e sustentar as filhas dela. Mesmo contrariados, aceitamos – conta Cristiano.
– O pesadelo começa já na chegada em Bangcoc. Ali tudo começou – narra o pai. – As pessoas que conduziriam eles até a empresa não falavam inglês ou português. Ao entrarem no carro, eles já se depararam com duas pessoas fortemente armadas com metralhadoras e fuzis. Com medo, minha filha postou um vídeo mostrando o entorno durante a chegada e, de relance, alguns dos caras. Já mostrou certa apreensão ali. Àquela altura, eu ainda tentei tranquiliza-la. Como pai, já não tinha muito o que fazer, ela já estava lá.
Fome e frio na cela
Nathalia relatou que viajou durante dois dias de carro após desembarcar em Bangcoc, até a chegada num local chamado KKparque, já em Myanmar: uma espécie de condomínio dominado e vigiado pela milícia que a sequestrara.
Ainda muito abalada, Nathalia ainda não consegue falar muito sobre o que passou. Com exclusividade, deu alguns detalhes sobre como era mantida no cárcere.
– Comia tripas, lesmas, dormi em chão duro, passei fome e frio – revela.
A vítima também relata que, no cativeiro, muitas pessoas consumiam alimentos em mamadeiras, por vezes agiam como crianças. Outros, eram semelhantes a indígenas. “Um povo muito sofrido, pobre”, definiu. As condições sanitárias eram precárias. Além de tudo, ela conta que sofria com as diferenças culturais em relação à alimentação.
– Eles comem cobras, escorpiões, pato, rãs, muitos legumes, muito miojo. O café da manhã lá às vezes era miojo… a água que nos davam para beber era salobra – relata Nathalia.
Trabalho consistia em golpes financeiros
Os sequestradores deixavam que ela e Patrick ficassem com seus celulares. Mas não podiam filmar, apenas realizar ligações rápidas. Foi assim que ela conseguiu se comunicar com a família, mas sempre de forma sutil, tentando tranquiliza-los. Após alguns meses, no início de setembro, o temor começou a se intensificar e ela começou a dar maiores detalhes aos parentes sobre o que estava acontecendo. Antes, já havia dito, através de um áudio, para que eles entrassem em contato com autoridades policiais caso ela desaparecesse por dois dias ou mais.
– Muitas coisas que ela presenciou lá, ela não nós contava por preservação da minha saúde e da minha esposa. Mas relatava à irmã. Ela dizia que eles eram agressivos, davam tapas e socos nas pessoas de mesma etnia, e outras vezes duros castigos – diz Cristiano. – Ela e o Patrick começaram a passar mal, até mesmo por conta das alimentações, e em certas ocasiões ela deixava escapar que estaria vivendo um inferno e que queria vir embora. Muitas vezes ela deixou escapar que não via a hora de vir embora, que o lugar era horrível, que não tinha o que fazer. Nas raras folgas que tinha, não tinha o que fazer lá, além de dormir.
Presos por falta de visto
A família de Patrick foi a primeira a procurar a mídia e as autoridades para contar sobre a situação vivida pelo rapaz. A divulgação chegou até os sequestradores, que entraram com truculência nos quartos, tomaram os celulares dos brasileiros e formataram os aparelhos. Foi nesse momento que Cristiano e Vanessa contam que procuraram o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). Os bandidos alegavam que os brasileiros tinham uma dívida com eles.
– Entrei em contato com o Itamaraty e com a embaixada de Yangon. Depois da primeira reportagem, o grupo (de sequestrados) começou a se articular lá dentro, por intermédio do Patrick e da minha filha. Eles sofreram, mas os bandidos afastaram eles das atividades por 18 dias alegando que os soltariam. Cobraram um resgate de US$ 6 mil dólares, que a família do Patrick conseguiu levantar. Depois, disseram que não podiam libertá-los ainda porque tinham que esperar a chegada dos passaportes.
– Mas não foi o que aconteceu. Os milicianos levaram eles e soltaram em outro lugar, onde eles foram detidos em um distrito sob a alegação de estarem sem vistos. Foram presos por conta da irregularidade. Quando eles foram pegos pela imigração, começamos, então a cobrar o Itamaraty e a embaixada. Depois de muita cobrança, foram soltos e mandados de volta ao Brasil.
Outros brasileiros e indianos libertados
Questionado pela reportagem sobre o caso, o Itamaraty afirmou que, após negociar a liberação de cidadãos brasileiros que se encontravam detidos em Myanmar, a pasta, por meio da Embaixada do Brasil em Yangon, empreendeu a repatriação.
Nathalia contou à família que, ao todo, foram libertadas mais de 50 pessoas que estavam mantidas em cárcere com eles. Pelo menos 38 indianos e dez brasileiros que conheceu durante o período em que foi mantida sob poder dos criminosos. Segundo ela, a maioria dos brasileiros era de Sobral, no Ceará.
Deixadas para trás
Já em casa, a vítima da quadrilha começa, aos poucos, a contar mais aos pais sobre o que aconteceu durante os últimos quatro meses. Ela conta que continua recebendo mensagens de pessoas que continuaram presas nas celas de “KKParque”.
– Tem quatro taiwanesas e uma jovem da Indonésia que estão pedindo socorro no celular dela (da Nathalia). Tem uma que já está lá há dois meses e só chora… tem mensagens no telefone em mandarim, que alguém vai precisar decifrar para a gente, mas estão pedindo socorro, porque continuaram lá – revela a mãe, Vanessa.
– A minha filha foi pensando em dar melhores condições de vida às minhas netas e, também, em terminar de construir a casinha dela no fundo aqui de casa – diz o pai, emocionado. – Agora, é aguardamos o reencontro dela com as meninas (que estavam esfriando a cabeça na casa da bisavó, Silvia, no interior do estado) e voltar a sermos felizes. Ver onde erramos e corrigir esses erros.