Comunidade na Amazônia é atacada enquanto líder participa da COP26
Moradores relatam que 11 deles, sendo três idosos, foram agredidos e amarrados por duas horas pelos criminosos
Barracos, móveis e pertences de moradores foram incendiados no acampamento São Vinícius, no município de Nova Ipixuna, no sudeste do Pará, na quarta-feira (3). O local, com cerca de 80 famílias, é alvo de disputa agrária há dez anos.
Moradores relatam que 11 deles, sendo três idosos, foram agredidos e amarrados por duas horas pelos criminosos. O caso será investigado pela Delegacia de Conflitos Agrários, da Polícia Civil.
O episódio foi denunciado pela ativista Claudelice Santos, moradora de Nova Ipixuna, durante a COP26, conferência da ONU sobre mudanças climáticas que ocorre em Glasgow (Escócia). Ela, que participa de evento no Reino Unido, relatou o episódio nas redes sociais.
“É importante que tenha uma investigação minuciosa sobre quem atuou na articulação, financiamento e ação no ataque. Não podemos admitir que a agromilícia tenha liberdade de matar, torturar e expulsar pessoas que apenas reivindicam direitos constitucionalmente garantidos”, escreveu no Instagram.
Claudelice é líder do Instituto Zé Cláudio e Maria, entidade que leva esse nome em homenagem a um casal de ativistas da reforma agrária que foi assassinado na região em 2011. Eles eram irmão e cunhada dela.
Segundo relatos dos moradores, por volta das 16 horas, os agressores chegaram em 14 caminhonetes e em um caminhão, já atirando contra os membros do acampamento.
Boa parte dos homens estava encapuzada. A maioria dos moradores conseguiu escapar em direção à mata, mas 11 deles foram capturados, incluindo duas mulheres e três idosos.
Os que não escaparam, ainda segundo o relato do grupo, ficaram rendidos ao longo de duas horas de bruços no chão. Eles receberam coronhadas, chutes e socos. Ninguém morreu na ação, mas os agredidos precisaram ir a um hospital da região para tratar os ferimentos.
O grupo de homens armados queimou barracas, móveis, utensílios, seis motocicletas e documentos das famílias do acampamento.
“Os fazendeiros chegaram atacando o acampamento, sem dar chance de defesa. Foi muito rápido, muito violento. Um terror. Peguei pancada, perdi alimentos, utensílios de cozinha. Deixou o povo sem nada. Eu fui tentar conversar com alguns para pedir para parar, mas me jogaram no chão e me chutaram com a arma apontada na cara”, disse Josias Teixeira, lavrador de 53 anos.
Ele conta ter sofrido uma série de agressões físicas e verbais e que, depois disso, foi colocado em uma caminhonete e largado em um ponto desconhecido no meio da mata.
Segundo o MPF (Ministério Público Federal), a fazenda Tinelli, onde o acampamento fica, está sobreposta a um imóvel matriculado em nome da União. Em 2002, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) publicou portaria de criação de assentamento na área.
De acordo com a CPT (Comissão Pastoral da Terra), o processo de criação do assentamento foi iniciado porque o fazendeiro ocupante da área não tinha direito de regularizar o imóvel, por já ter recebido título de outro imóvel da União e por ter utilizado a terra pública para especulação.
Os proprietários da fazenda Tinelli, na época, também foram acusados de vender 810 hectares da área ilegalmente.
Para a advogada da CPT (Comissão Pastoral da Terra), Larissa Tavares, há inércia do Incra, porque, em outubro, o MPF recomendou ao instituto que concedesse a área para a reforma agrária.
A comissão calcula que entre 1996 e 2019, 320 trabalhadores e lideranças foram assassinados no Pará e outros 1.213 foram ameaçados de morte por conta de conflitos de terra.
Em 2014 as famílias sem terra acamparam no local pedindo que o pedido para criação do assentamento saísse do papel, mas a família Tinelli conseguiu na Justiça Estadual do Pará uma liminar favorável ao despejo imediato do grupo.
Josias Teixeira afirma que o acampamento continuará, mas agora nas proximidades da fazenda. “Vamos esperar a decisão da Justiça. Estamos vivendo com dificuldades de alimentação. Vivemos do extrativismo e fazem uma coisa dessa. Não tem justificativa. A nossa região é pautada pela violência, mas não vamos parar de lutar”, afirma.
A fazenda Tinelli foi adquirida em 1980 por Abílio Tinelli e em 1987 entrou em processo de titulação definitiva, afirma Thiellis Tinelli, neto de Abílio e advogado da fazenda.
“Ocorre que, pela demora na titulação da Fazenda, em 2002 fora criado o Acampamento São Vinícius, onde os sem-terra sustentam seu direito de posse. Fato é que a fazenda está em processo de titulação há mais de três décadas”, diz.
Tinelli também afirma que os acampados começaram a morar na fazenda anexa Dois Corações em 2019, essa sim com titulação definitiva. Os moradores do acampamento São Vinicius afirmam não terem certeza da exata localização da terra cuja titulação foi recomendada pelo MPF ao Incra, o que pode ter provocado confusões.
Segundo o advogado, os homens armados não eram enviados dos fazendeiros. Tinelli diz que era apenas um grupo de moradores da cidade que se comoveu após um suposto ataque de acampados armados contra a fazenda e, portanto, pediram a retirada dos acampados do local de forma voluntária.
“Apesar do que é espalhado absurdamente pela mídia, não houve homicídios, lesões corporais ou afins, houve somente pedido de retirada dos invasores, que no mesmo dia saíram”, disse o advogado.
Em nota, a Superintendência Regional do Incra Sul do Pará diz que só recebeu na última quarta (3) a notificação do MPF. “A situação do referido imóvel rural está sendo cuidadosamente analisada pelo corpo técnico para pronunciamento sobre o assunto e a adoção de medidas cabíveis”, diz o documento.