QUARENTENA

Confinadas, famílias mudam hábitos e compram mais alimentos

O setor de alimentos e as cozinhas das famílias não serão mais os mesmos ao fim…

O setor de alimentos e as cozinhas das famílias não serão mais os mesmos ao fim da quarentena imposta pelo coronavírus. As mudanças, que começam na produção industrial, passam pelos supermercados e chegam à rotina nos lares, podem ter vindo para ficar. Além da alta dos preços dos alimentos, quatro vezes acima da inflação média, de acordo com a Fundação Getulio Vargas (FGV), os carrinhos estão mais cheios, e as idas aos mercados, mais espaçadas, aponta pesquisa da Nielsen Brasil. Na última semana de março, a frequência de compras caiu 6,5%, enquanto o número de itens no carrinho subiu 22%.

Não foi só isso. Notou-se compra maior de produtos básicos para cozinhar em casa, como arroz, feijão, farinha, óleo, massas e produtos frescos, mostrando que a cozinha tem sido o principal cômodo das casas nesses tempos de quarentena. A formação de estoques na despensa favoreceu supermercados, hipermercados e atacarejos, que vendem quantidades maiores.

Do total das compras feitas em março, 61% foram nesse tipo de varejo, segundo a Nielsen Brasil. Pesquisa da Kantar, consultoria de análise de consumo, mostra que os atacarejos conquistaram mais de 2,2 milhões de clientes em abril, e os hipermercados, mais de 560 mil.

— Somente na última quinzena de março, a procura por arroz, feijão e massa aumentou mais de 100% — constatou Belmiro Gomes, presidente do Assaí Atacadista.

Mesmo depois de dois anos de recessão e três de estagnação econômica, as famílias ainda se permitem alguns mimos.

— Há procura por itens mais baratos. Mas o consumidor tem se dado alguns luxos. Se não pode ir ao bar, compra uma cerveja diferenciada. Uma certa indulgência, um presente para passar por este momento — diz Fernanda Vilhena, gerente de Atendimento ao Varejo da Nielsen Brasil.

Com isso, cresceu a venda de chocolates, salgadinhos, snacks. As famílias estão preferindo cozinhar em casa por ser mais barato e, no caso de Luciane Stochero e Rogério Andrade Barbosa, para comer melhor. Luciane passou a fazer biscoitos e pães. Antes da quarentena, não tinha tempo. O novo costume fez o casal, morador da Glória, na Zona Sul do Rio, comprar mais farinhas e frutas mais saudáveis e caras. Nutricionista, Luciane pretende manter alguns hábitos adquiridos na quarentena:

— Tento fazer uma quantidade que dure uma semana, e quando acaba, sempre refaço. Quero organizar minha própria alimentação, evitando comer fora. Com isso, pretendo economizar e manter a saúde.

Luciane Stochero, 35 anos, nutricionista Foto: Acervo pessoal/Acervo pessoal

Lojas se adaptam

Na rede de supermercados Guanabara, os líderes de venda são filé de peito de frango, leite, arroz, linguiça, café, feijão, leite em pó, refrigerante, óleo, açúcar e cerveja, juntamente com os produtos de limpeza. Para manter a segurança em meio à pandemia, a operação da varejista mudou. Passou a abrir todas as lojas aos domingos, instalou gabinetes de acrílico nos caixas e marcações de distância mínima entre clientes no piso. Segundo Lenício Barbosa, diretor de Operações, as compras aumentaram num primeiro momento, mas se normalizaram:

— O tíquete médio ficou maior, depois normalizou, e agora tem tido picos. O horário da compra mudou, e isso fez com que tivéssemos que alterar o nosso quadro de horários para diluir o fluxo de clientes e evitar aglomeração. Temos percebido que as compras maiores voltaram a acontecer, mas o cliente quer ir ao supermercado sempre. Não temos visto consumo desenfreado.

Barbosa afirma que não há problemas de abastecimento:

— O estoque está abastecido e sem ruptura. Só no primeiro momento tivemos falta de álcool em gel nas prateleiras, mas já foi normalizado. Por parte da indústria houve um repasse de preço em algumas categorias, como leite longa vida, alho, feijão, arroz e batata.

Pelos índices da FGV, a alimentação já subiu este ano 4,3%, contra inflação média de 1,1%, diz André Braz, economista da entidade:

— Alimentação responde por 20% do gasto das famílias. E houve alta da demanda com a quarentena, desvalorização cambial e efeitos sazonais.

Esse movimento de alta de preços se manteve, mesmo com o desemprego e a queda da renda. O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do IBGE, caiu em abril 0,31%, mas alimentos subiram 1,79%, depois de já terem aumentado 1,13% em março. As altas de leite longa vida, alho e feijão, citadas por Barbosa, aparecem no índice: 9,6%, 10,4% e 15,1%, respectivamente, em abril.

Marcas mais em conta

Edison Ticle, diretor financeiro da Minerva, terceira maior produtora de carne bovina do país, notou que o brasileiro reduziu o consumo e migrou para cortes mais baratos:

— Com redução de renda, a tendência é mudança de hábitos. O consumo de cortes mais baratos deve permanecer.

Com isso, o preço das carnes caiu 10% no ano até abril. Já o ovo está 15% mais caro. Mesmo com a alta, é um produto mais barato.

Marcas menos conhecidas e mais baratas também entraram no carrinho.

— Comecei a procurar marcas mais baratas. Presunto, patê e alimentos orgânicos foram cortados. Não estamos nos privando de nada, mas optamos por produtos mais baratos e evitando comprar muito — conta a veterinária Viviane Garrido, que passou a cozinhar mais para a família.

Os pedidos de comida pronta também foram cortados, para reduzir custos e riscos de contágio do coronavírus:

— Cozinhei pratos que há muito não fazia. Por um lado isso foi bom, porque economizamos e o meu filho, depois de 9 anos, finalmente conheceu meu tempero. Antes era almoço fora todo fim de semana.

Pedidos pela internet

Outra tendência que ganhou força é o comércio eletrônico. As vendas on-line aumentaram, a ponto de os novos compradores representarem 41% dos que usaram a internet para fazer as compras do mês, diz Fernanda, da Nielsen. Normalmente, esse percentual fica em torno de 15%.

Jorge Faiçal, presidente de varejo do GPA (das redes Extra e Pão de Açúcar) notou essa alta. As vendas on-line cresceram 150% nas duas últimas semanas de março. Também houve forte aumento de vendas, principalmente de básicos, perecíveis como carnes e lácteos e itens de higiene:

— Temos trabalhado próximo da indústria para manter o abastecimento. E conseguimos atender a demanda.

Esse novo consumidor deverá ser mais racional, como Viviane, que pretende manter os novos hábitos:

— Pretendo cozinhar mais em casa e não comprar por impulso. Às vezes, a gente compra um produto em promoção, põe na despensa e, quando vê, já está vencido. Terei um consumo mais consciente.

A preocupação com alimentação mais saudável se fortaleceu, segundo o consultor Marcos Gouvea, que também prevê aumento da venda de comida pronta após a pandemia.