Conheça a visão acadêmica sobre a intolerância religiosa
Na última terça-feira (21) foi celebrado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A…
Na última terça-feira (21) foi celebrado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A data, como observou Iyalorisa Mariléia Lasprilla, que faz parte do Movimento Agô, é um lembrete à visibilidade, uma vez que a luta contra a intolerância religiosa deve ser diária. A socióloga Aava Santiago, que também é evangélica, é incisiva ao dizer que “intolerância religiosa, infelizmente, está no cerne dos principais conflitos mundiais. Não só no Brasil esta tem assumido contornos devastadores”.
Segundo ela, a relação da Europa com o islamismo passa da intolerância e se transforma em uma xenofobia generalizada. “Comparam com terrorismo.” Vale destacar que uma pesquisa conduzida pelo Pew Research Center, publicada em 2015, apontou o islamismo como a religião que mais cresce no planeta. À época, 1,6 bilhão de pessoas se consideravam muçulmanas. Inclusive, se continuar a ascender, até o fim do século, eles podem superar os cristãos em número.
Para Aava, simplificar relações complexas, ao comparar islamismo com terrorismo, umbandismo com bruxaria, cristianismo com fundamentalismo, é um equívoco que leva, inevitavelmente, à intolerância. “Trata-se do completo desconhecimento do arcabouço dessas religiões, dos preceitos e práticas das pessoas que as professam. A ignorância alimenta a intolerância”, diz.
Brasil
Mas de volta à nossa realidade – no Brasil, segundo dados de 2010, haviam 40 mil muçulmanos em uma população de 200 milhões –, a socióloga aponta que, no País, existe o racismo religioso. “Historicamente, houve a tentativa dos povos de origem africana em tornarem as suas crenças brancas para não serem perseguidos, ou seja, sincretismo religioso. Na verdade, foi a tentativa desesperada de sobrevivência das crenças.”
De acordo com Santiago, quando Gilberto Freyre, um teórico que ela considera brilhante, falou em democracia racial [ao afirmar que País escapou do racismo e discriminação racial, por ser mestiço], tratou-se de uma falácia. “Não é mestiço quando a polícia atira. Nem na hora de propagar intolerância religiosa”, declarou.
Ela também pontua que “até a nossa mestiçagem foi constituída dentro de um país católico, que atende a determinados fins políticos. Quando esbarra em uma negritude não submissa aos traços brancos, a mestiçagem cai por terra”.
Aava exemplifica: “Você não vê um culto na televisão, com um bispo expulsando um espírito nórdico. A demonização é sempre de entidades que são africanas. Isso é um traço de um racismo religioso.” Em seu relato, ela lembra, ainda, que evangélicos não cultuam em imagens ou crucifixos, mas não há incômodo ou medo de vê-los. Apesar disso, quando são imagens africanas, o sentimento é diferente.
Violência
Evangélicos e católicos também sofrem, diz Aava. Mas no aspecto narrativo. “Sou filha de pastor e cresci ouvindo que meu pai era ladrão e quem dava o dízimo era idiota e alienado. Mas isso não implica a violência física, que faz toda a diferença.”
“E embora tenhamos a tendência de ser intolerantes baseados na ignorância, tem também a intolerância institucionalizada contra religiões africanas.” Conforme relatado por Aava, pelo cristianismo ser a religião que formata o arranjo social brasileiro, existem projetos ligados a ele que viram projetos de poder, coisa diferente de outras religiões.
“Nesse ponto, a bancada evangélica faz um desserviço, pois reforça esteriótipos anticristãos, antievangelistas. Esses caras não têm nada a dizer, além de criminalização de maconha, kit gay e contra o aborto. Se boa parte da comunidade evangélica perceber, eles perdem o poder.” Para ela, eles alimentam a intolerância, fomentando o medo de uma ameaça daquilo que não existe, para se manterem no poder.
O goiano Glaustin da Fokus (PSC) faz parte da bancada evangélica na Assembleia Legislativa do Estado. Foi pedido a ele que comentasse sobre os comentários da socióloga Aava Santiago, mas ele não respondeu até a conclusão do texto.
Visão cultural
O cientista social da religião Flávio Sofiati trabalha com sociologia e antropologia. A visão cultural exposta por ele é aquela que se enquadra melhor no segundo caso. Segundo ele, o problema da intolerância é que o sistema das religiões em geral, principalmente as vinculadas a instituições, como cristianismo e islamismo, prevê uma universalização delas. Com isso, há a negação às demais religiões.
“É uma perspectiva que olha para o mundo e tenta convertê-lo”, explica. “Isso acaba criando um embate com pessoas ou grupos que não aceitam essa visão de mundo. Então, por serem universalizantes, elas vão para o embate.”
Questionado sobre como contornar essa situação, o cientista social diz ser muito difícil uma religião se manter na perspectiva da tolerância sem se abrir para a modernidade. “A tolerância é uma perspectiva da modernidade. A ideia de pluralidade não é algo nos dogmas religiosos.”
Para exemplificar a possibilidade, ele cita que, no campo do cristianismo, existem setores ligados à teologia da libertação, que é muito mais tolerante. “A postura do novo papa [Francisco] é de uma visão argentina, a teologia do pobre, que bebe das mesmas fontes que a da libertação. É muito diferente do papa Bento XVI, que vem de uma tradição alemã, de um cristianismo mais dogmático”, demonstra.
Assim, o que Flávio percebe é que, independente do campo da religião, há grupos mais tolerantes, mas não é o que predomina. “[Assim,] As religiões de matriz africana e todos os grupos sociais que não têm intenção de aderir aos dogmas cristãos sofrem com a intolerância. Mas democracia é pleno respeito, inclusive das minorias.”
Teologia
Para o padre Davi Pereira, coordenador do Curso de Teologia da PUC, a intolerância religiosa é uma ignorância, “é não aceitar a medida do outro”. Ele explica que religião é religar o homem a si mesmo e a Deus. “Nós, cristãos, temos a convicção de ter encontrado em Cristo a verdade.”
Assim, ele pontua que o caminho comum das religiões é a paz que vem de Deus e quando isso é deixado de lado, se prendendo a pequenos detalhes, “pode-se criar uma chacina em nome da religião”.
Em relação aos problemas enfrentados por religiões de matriz africana, ele cita os fatores culturais. “A religião chegou ao Brasil por meio dos escravos, que precisam manter vivas as suas memórias. Eles aproveitaram o cristianismo imposto e transforam na sua própria religião (sincretismo religião). Mas quando alguém quer olhar somente pelo seu prisma, sempre vai dizer que o outro está errado.”
Desta forma, Davi reforça o diálogo. “Não posso demonizar o que eu não conheço. Temos que estar perto. O caminho é o diálogo inter-religioso, ao modo do papa Francisco de outros antes.”
Posicionamentos passados
Na matéria publicada na terça-feira (21), a Prefeitura de Goiânia não enviou posicionamento acerca das ações contra a intolerância religiosa. Nesta quarta-feira (22), eles se posicionaram: “A Prefeitura de Goiânia, por meio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Políticas Afirmativas, desenvolve ações de combate ao racismo e intolerância buscando promover a igualdade e o respeito à diversidade religiosa e à cultura das populações tradicionais.”
De acordo com a pasta, entre as ações mais efetivas está a participação das religiões da matriz africana no Conselho Municipal de Direitos Humanos, além da promoção de rodas de conversa para sensibilização nas escolas municipais e promoção da cultura da paz e de respeito à liberdade de fé religiosa. “O tema é tratado como parte do racismo estrutural presente na sociedade brasileira, por isso, recentemente (em novembro de 2019), o prefeito Iris Rezende (MDB) decidiu instituir o feriado em comemoração ao Dia da Consciência Negra, já estabelecido em diversos estados e municípios do país.”
A secretaria informou, também, que foi dado o início à discussões sobre a implantação do Museu da Consciência Negra na capital, junto com representantes da Câmara Municipal e do Movimento Negro Unificado. A arquidiocese de Goiânia, que também foi procurada na terça, não enviou resposta até o fechamento da matéria.