CPI da Covid vai investigar uso de cloroquina nas aldeias indígenas
Povos registram alta taxa de mortalidade e também pedem apuração da comissão sobre a ação de militares em suas terras
A CPI da Covid no Senado vai receber de representantes indígenas uma lista de pelos menos 15 tópicos a serem apurados pela comissão que vai investigar as ações e possíveis omissões do governo federal durante a crise sanitária nas aldeias. Entre as denúncias está uma orientação do próprio Ministério da Saúde para o uso de ivermectina e cloroquina em índios do Amazonas que apresentem sintomas da doença. O tratamento do chamado “kit Covid” é questionado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e cientistas, uma vez que não existe nenhuma comprovação da eficácia dos medicamentos contra o coronavírus.
Ofício obtido pelo GLOBO confirma a indicação do “kit Covid” feita pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde. Ele será enviado à CPI como prova, para que o colegiado possa cobrar providências sobre o que os índios apontam como “abandono e negligência” do governo federal no combate ao vírus entre esses povos.
No documento distribuído pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) de Vilhena (RO) a coordenadores da Fundação Nacional do Índio (Funai) e lideranças indígenas de 144 aldeias da Amazônia, fica clara a recomendação dos medicamentos para “todos os que apresentarem sintomas como dores no corpo, tosse, dor de cabeça, febre, coriza, dificuldade para respirar, dor de garganta, perda do olfato ou paladar”.
O GLOBO fez contato com a coordenadora da DSEI Vilhena que assina o documento da Sesai, Solange Pereira Vieira Tavares, mas ela não retornou às mensagens nem às ligações. A Sesai e o Ministério da Saúde também não se pronunciaram.
Encontro com senadores
Os representantes indígenas vão usar o encontro virtual com senadores amanhã para apresentar suas demandas. Representando a CPI, estará Humberto Costa (PT-PE), que é também presidente da Comissão de Direitos Humanos.
Os indígenas estarão representados pela deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR), coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas; a ativista Maial Paiakan e os advogados Luiz Eloy Terena e Samara Pataxó.
— Vamos levar aos senadores a nossa preocupação com a alta taxa de mortalidade de indígenas, principalmente em contexto urbano, e denúncias de que garimpeiros aliciaram índios para trocar vacina por ouro, tudo isso em uma situação de baixa cobertura vacinal e diante do agravamento das invasões das terras indígenas durante a pandemia — adianta Joênia Wapichana.
Os indígenas também apresentarão à CPI um relatório sobre as missões das Forças Armadas em áreas mais afastadas. De acordo com o documento, algumas foram úteis e fortaleceram as ações de combate à Covid-19, mas outras foram consideradas um “teatro” e acabaram por levar mais risco do que ajuda humanitária.
A Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, por exemplo, aponta que numa ação coordenada pelo Ministério da Defesa em conjunto com o Ministério da Saúde e a Funai no final de junho do ano passado, na qual estiveram presentes o então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e o coordenador da Sesai, coronel da reserva Robson Santos Silva, entre outros representantes de Marinha, Exército e Aeronáutica, foi desrespeitada a decisão dos indígenas pelo auto-isolamento, inclusive com grande presença da imprensa internacional que acompanhava a operação.
No encontro, diz a entidade, foram entregues 16 mil comprimidos de cloroquina 150mg para as equipes de saúde nas comunidades e outros 33 mil comprimidos de cloroquina para o DSEI Yanomami.
Em outra ação comandada por um militar, o Ministério Público Federal de Roraima (MPF-RR) investiga a distribuição de cloroquina às comunidades locais. O alvo é o capitão do Exército Tárcio Alexandre Pimentel. Ele também é investigado por ter liberado a entrada de pessoas em uma aldeia sem autorização prévia. Pimentel fora nomeado para comandar o DSEI Leste de Roraima pelo então ministro da Saúde Eduardo Pazuello. O Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem.
A questão indígena é uma das preocupações do governo federal durante as investigações da CPI. No documento enviado pela Casa Civil da Presidência da República a 13 ministérios há um tópico denominado “genocídio de indígenas” na lista de 23 “acusações” esperadas na comissão. O tópico, porém, não será levado pelo indígenas à comissão, como apurou O GLOBO, mas sim a questão da alta taxa de mortalidade, segundo os indígenas, agravada pela demora do governo em apresentar um plano de instalação de barreiras sanitárias de proteção nas aldeias.
— (O documento da Casa Civil) Foi uma contribuição importante para ajudar nas investigações. Aponta aspectos que estarão em nosso plano de trabalho, e a questão dos povos indígenas, que estava passando ao largo — afirmou o senador Randolfe Rodrigues, vice-presidente da CPI, na entrevista coletiva após a instalação do colegiado.
Taxa de mortalidade
O número de mortes entre indígenas em razão da pandemia do novo coronavírus já está 1.047 em todo o país; 163 povos já foram afetados pela doença. A média é de três mortes por dia, aponta levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). No total, 52.997 nativos já foram infectados. Os dados da Apib mostram que o número de óbitos é bem superior ao divulgado pelo governo, já que a Sesai não contabiliza os casos de índios que vivem em contexto urbano ou não aldeados. No último boletim divulgado pela Sesai foram registradas 657 mortes e 47.373 casos de Covid-19. A etnia Xavante, que vive em Mato Grosso, é a mais atingida pelo vírus, com 79 mortes.
A taxa de mortalidade do coronavírus (óbitos/por 100 mil habitantes) entre esses povos chega a ser sete vezes maior do que a da população brasileira, comparada em diferentes faixas etárias. Já a taxa de letalidade (óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave) é 19% maior do que em não indígenas, com variações entre as regiões do país analisadas pelos pesquisadores da Fiocruz.