Decidimos parar de produzir no Brasil, mas não sair do país, diz presidente da Ford para a região
Na primeira entrevista de executivo após o fechamento das fábricas no país, empresa diz que Brasil segue um bom mercado
A Ford quebra o silêncio e, na primeira entrevista de um executivo após o fechamento das fábricas no Brasil, anunciado em janeiro, fala de futuro.
Daniel Justo, que assumiu a presidência da empresa na América do Sul em maio, garante que a montadora americana vai seguir com seus negócios e até confirma lançamentos. Mas muita coisa mudou.
A atual sede da empresa fica na região fica na Vila Olímpia, bairro da zona sul de São Paulo. A vizinhança abriga também escritórios de marcas premium como Audi, BMW e Porsche. É um sinal dos tempos: a Ford está mais elitizada, seus carros não custam menos de R$ 180 mil.
Enquanto segue em reestruturação e negocia suas plantas, a montadora americana investe no desenvolvimento local de produtos globais. Cerca de 300 engenheiros foram contratados, e o campo de provas de Tatuí (interior paulista) segue na ativa.
“Estamos pensando muito mais em software do que em manufatura propriamente dita. E se você pegar as 2.000 pessoas que temos no Brasil hoje, a maioria está trabalhando em inovação e desenvolvimento de tecnologia”, diz Justo.
FOLHA: Como a Ford tem lidado com a insatisfação de consumidores que temem perder dinheiro na hora de vender seus carros?
DJ: Acho que é natural veículos sofrerem alguma desvalorização, pelo tempo de uso ou pela renovação de portfólio que todas as montadoras fazem anualmente ou a cada três ou quatro anos.
Nós não estamos vendo uma desvalorização do Ka ou do EcoSport, diferentemente do que está acontecendo com o mercado. Inclusive a gente viu o Ka se valorizando mais do que a média do mercado.
A desvalorização do produto pode estar muito ligada com a desconfiança do consumidor, se existirão serviços, se existirá disponibilidade de peças. E nesses primeiros seis meses do ano, temos uma estatística que aponta que 99,7% dos clientes que vão às nossas revendas têm seu produto consertado em menos de 24 horas.
Manter essa consistência de qualidade de serviço e disponibilidade de peças é fator que deveria prevenir qualquer desvalorização extraordinária.
FOLHA: As questões trabalhistas pós-fechamento das fábricas já foram resolvidas?
DJ: Nós já fechamos em sua totalidade os acordos trabalhistas com os sindicatos da Bahia, da planta de Camaçari, e de Taubaté, em São Paulo. Inclusive as indenizações já foram pagas.
Estamos preparando plantas para venda de ativos. A gente anunciou o fim da produção da Troller [no Ceará] para este quarto trimestre e estamos neste momento trabalhando com o sindicato para fechar negociações.
FOLHA: A Troller é um caso interessante, porque a Ford foi enfática ao falar que venderá o espaço, mas não a marca. A empresa pretende utilizá-la no futuro?
DJ: A gente tem grande respeito pela marca da Troller, pelos consumidores. Antes de mais nada, estamos procurando nos certificar que continuaremos dando todo o suporte para consumidores.
Em termos de planos futuros, eu não vou especular agora sobre o que a gente pretende fazer a respeito dessa propriedade intelectual. Estamos focados em comercializar os ativos em todas as plantas, mas não estamos comercializando marcas ou propriedades intelectuais em nenhuma das fábricas que fechamos.
FOLHA: A Ford vai continuar fabricando peças, vai importá-las ou irá transferir a produção para fornecedores?
DJ: É um mix de estratégias. Em alguns casos, nós fizemos o que chamamos de “all time buy”: a gente realmente estimou a demanda para períodos longos, muito além da legislação, e fez uma estocagem.
Se eu tenho um estampado [peça como porta e capô] que era feito em Camaçari, hoje eu tenho aquele molde com um fornecedor em um contrato de longo prazo. Os depósitos são grandes, eu diria que tem muita peça estocada, mas também tem uma estratégia boa para os consumidores.
FOLHA: Mas há muitos consumidores que acreditam na saída definitiva da Ford do Brasil.
DJ: Não estamos saindo do Brasil. Decidimos parar de produzir no Brasil, mas continuamos produzindo na América do Sul. Nada melhor para demonstrar nossa presença do que toda a linha de produtos e serviços que estamos trazendo e iremos trazer.
Temos a [van] Transit, estamos lançando todo o processo de manufatura no Uruguai, e o Brasil é o maior mercado consumidor desse produto na região. Anunciamos a nova geração da Ranger, que será produzida na Argentina, e o Brasil também é o maior mercado consumidor desta planta.
Teve também o Mustang Mach 1, o Bronco e a gente vai trazer a picape Maverick [feita no México]. Isso vem reforçar esse posicionamento que a gente está buscando, de ser extremamente forte no segmento de picapes.
Eu acho que a Maverick terá público muito interessado pela tecnologia, pelas dimensões do produto e pela forma de dirigir. Já fizemos testes aqui e todo mundo ficou extremamente impressionado com a capacidade do produto.
FOLHA: A Maverick chega em 2022? Primeiro ou segundo semestre?
DJ: Chega em 2022. Ainda estamos trabalhando no timing. Já são mais de 100 mil reservas nos Estados Unidos. O que vemos com esses novos produtos é que a quantidade de pedidos antecipados já responde por um bom tempo da produção inicial da planta.
FOLHA: Quais são as expectativas da Ford para os próximos cinco anos? Além da Maverick, quantos produtos serão lançados?
DJ: Não vou te falar especificamente o número de produtos, mas vou te falar como nós estamos pensando em relação ao negócio. Anunciamos uma reestruturação e acho que isso veio ligado a olharmos para o futuro, olharmos para onde a empresa deveria se posicionar nesse mercado.
Estamos virando a chave, terminando reestruturação difícil, passando a olhar para o futuro e organizando a empresa.
Temos picapes e SUVs, onde a Ford é extremamente forte globalmente. Temos aqui, no mercado brasileiro, a Ranger, o Territory, o Bronco. No resto da América do Sul a gente já tem outros produtos, como a F-150 e o Explorer. A empresa tem robustez global, e a gente tem toda a intenção de buscar crescer nesses segmentos.
Outra área extremamente importante são os veículos comerciais leves. Somos líderes na Europa com a Transit em transportes leves de passageiros e carga. A gente tem entre 43% e 45% desse mercado nos Estados Unidos.
FOLHA: A Transit chega ao Brasil ainda neste ano?
DJ: Exato. Através de uma parceria com a Nordex, no Uruguai, vamos começar a trazer a Transit para o Brasil já no final deste ano. A ideia não é só o produto, a ideia é organizar toda uma divisão de negócios ao redor de veículos comerciais.
O produto é importante, mas esse consumidor quer eficiência para o negócio dele. Você vai ver a gente trabalhando muito forte em “uptime” [produtividade] para certificar que o carro do cara não pare. O pacote de serviço é extremamente competitivo.
E se você olhar para o nosso portfólio no Brasil, hoje uma das nossas vantagens é a conectividade. Eu acho que os consumidores ainda não têm uma visão completa de tudo o que a conectividade pode proporcionar tanto para nós, como empresa, como para o consumidor.
Um exemplo: um cliente comercial com uma Transit conectada pode ter uma visibilidade completa da produtividade do seu veículo. Do outro lado, lado da empresa, nós temos informação de mais de 3.000 itens possíveis de falhas para poder antecipar e prover um serviço para o cliente antes de o veículo parar.
FOLHA: A empresa vai investir em modelos híbridos e elétricos no mercado nacional?
DJ: Sim. A Ford anunciou US$ 22 bilhões de investimento até 2025 nessa área, e temos um portfólio fantástico de produtos globais para escolher e trazer os mais adequados para o mercado sul-americano e brasileiro. Obviamente não vou dizer quais deles vamos lançar aqui, mas nós temos muitas opções, tanto nos híbridos como nos elétricos.
Tão importante quanto a questão de ser elétrico ou não, é a conectividade. Nós temos toda a nossa linha conectada aqui no Brasil, e vamos estender essa conectividade para o resto da América do Sul até 2023.
FOLHA: A Ford não vai mais investir em carros compactos e sedãs?
DJ: Até onde a gente pode prever o futuro, a resposta é não. Essa escolha já foi feita lá atrás e os resultados que nós estamos colhendo só reforçam que estamos na direção correta, globalmente e na nossa região.
FOLHA: A empresa pretende importar o EcoSport, que foi seu maior sucesso no Brasil?
DJ: Não, nós não temos a intenção de importar o EcoSport para o Brasil. Estamos importando algumas unidades para a Argentina [a partir da Índia] por uma questão muito específica de contrato de consórcio que temos de cumprir. Para o Brasil, não é o foco.
FOLHA: O que a Ford está fazendo para fidelizar os clientes? Há um público consumidor que está chegando à marca, porém mais desconfiado.
DJ: Eu acho que hoje essa é uma das questões que mais conversamos aqui dentro. É a oportunidade que a gente tem, com um portfólio mais focado e com um volume menor de vendas, de dar muito mais atenção a esses clientes. Tanto aos que já estão com a gente quanto aos novos clientes.
Apesar de termos fechado um número de concessionários no Brasil, a gente tomou muito cuidado para que a nossa distribuição geográfica fosse ampla no território nacional.
FOLHA: Quantas lojas foram fechadas?
DJ: Nossa cobertura é de cerca de 200 municípios no Brasil. O número de lojas fechadas é por volta de cem. Mas no passado existiam várias lojas na mesma cidade, então tivemos cuidado para que a cobertura fosse mantida da melhor forma possível.
A gente inaugurou dois depósitos de peças novos, um em Porto Feliz e um em Cajamar [cidades de São Paulo], com uma cobertura ampla de distribuição. A conectividade também tem dado oportunidade para a gente ficar muito mais próximo do consumidor.
Através do Ford Pass, hoje a jornada do cliente pode ser totalmente digital. Ele consegue agendar um serviço, consegue inclusive optar pelo “pick up and delivery”, onde alguém busca e devolve o seu veículo.
Nós estamos olhando muito também em como nos aproximar dos diferentes modelos de consumo. O Ford Go, que colocamos no mercado e estamos escalando agora, é um bom exemplo disso.
Se o consumidor não tem a preferência da compra de um veículo, não quer ter todo aquele trabalho que vem junto com pagamento de IPVA, licenciamento e multas, nós oferecemos uma alternativa, uma plataforma em que a jornada é digital e transparente para o cliente.
FOLHA: Há também os problemas com semicondutores, e a expectativa é que sejam resolvidos apenas no ano que vem, certo?
DJ: Já estamos vendo uma melhora. Se a gente olhar globalmente, o impacto dos semicondutores foi muito grande no segundo trimestre do ano e ainda existe no terceiro, e tende a diminuir conforme alguns gargalos são resolvidos. Mas essa dificuldade ainda vai se arrastar por alguma parte do ano que vem.
FOLHA: A Ford estuda produzir um carro em parceria com uma outra montadora no Brasil?
DJ: No momento não temos nenhum plano. Mas, pensando estrategicamente, eu acho que há uma grande transformação pela qual a indústria automobilística global vai passar em função de tecnologias, de toda a evolução de veículo a combustão para o veículo elétrico.
Acho que veremos muito investimento nas tecnologias, nos desenvolvimentos e em parcerias para produção. Eu não consigo adiantar o futuro, mas com certeza a Ford tem um grande fator disruptor de tecnologias de veículo e produtos.
Eu vejo que os locais em que os veículos irão depender muito das eficiências de onde você consegue trazer componentes e produzir com escala. Mas não tem nada específico para o Brasil no curto prazo.
FOLHA: Como o senhor enxerga o momento da economia no Brasil? Você ainda acredita em alternativas como auxílio governamental à indústria?
DJ: Acredito que o Brasil é um mercado automotivo global importante, e nós acreditamos que vai continuar crescendo e se desenvolvendo. Esperamos que o país mantenha toda uma estrutura de negócio pautada em estabilidade, com um nível de responsabilidade fiscal que resulte em uma inflação controlada, em um câmbio controlado.
Quando a gente olha o setor automotivo, essa transição dos veículos a gasolina para os veículos eletrificados e conectados, penso que o Brasil, como país, tem que conseguir alavancar sua estrutura fabril. Acho que a participação do governo, com diretrizes e legislações, vai ser importante.