Depressão e ansiedade afetam 90% do presídio onde Elias Maluco morreu
Transtornos mentais, como depressão e ansiedade, afetam 90% dos detentos da Penitenciária Federal de Catanduvas,…
Transtornos mentais, como depressão e ansiedade, afetam 90% dos detentos da Penitenciária Federal de Catanduvas, na região oeste do Paraná. É a mesma unidade de segurança máxima onde o traficante Elias Pereira da Silva, conhecido como Elias Maluco, foi encontrado morto dentro da própria cela com sinais de enforcamento no dia 22 de setembro.
O dado consta nos relatórios feitos em presídios federais pela DPU (Defensoria Pública da União) em 2019, aos quais o UOL teve acesso com exclusividade. Nos documentos, o órgão diz que a restrição no contato com a família e as sanções de isolamento por mau comportamento —que deixam internos por 30 dias em celas isoladas, sem direito a saída e com pouca iluminação solar— agravam o problema e podem ser consideradas como “pena cruel”.
A DPU constatou índice elevado de presos que fazem uso de medicamentos psiquiátricos —como o Rivotril— nas vistorias feitas nos presídios federais de Catanduvas (PR), Mossoró (RN), Porto Velho (RO) e Campo Grande (MS).
Mas a situação mais grave é a da penitenciária paranaense, onde estava Elias Maluco, condenado pela morte do jornalista Tim Lopes. A Polícia Federal investiga o caso como suicídio. Dos 153 presos de Catanduvas, 138 faziam uso de medicamentos no ano passado, quando da vistoria da DPU.
Levantamento feito pelo UOL com base nos relatórios apontou que dois em cada três internos dessas unidades de segurança máxima usam esse tipo de remédio —380 de um total de 596 internos.
Casos de suicídio despertam a atenção para que possamos entender se esse regime de cumprimento de pena está ocasionando um agravamento ou até o surgimento de problemas mentais nesses apenados
Alexandre Kaiser Rauber, defensor público federal
Segundo o defensor, a restrição do contato com a família pode ter contribuído para o agravamento desse cenário. Em 2017, uma portaria cancelou as visitas íntimas nos presídios federais. Em fevereiro de 2019, a portaria 157, assinada por Sergio Moro, então ministro da Justiça e Segurança Pública, impediu as visitas sociais. Em dezembro, as proibições ganharam status de lei com o pacote anticrime.
Com isso, os encontros com a família ficaram restritos a um parlatório, separando detento e parentes por um vidro. Após a pandemia do novo coronavírus, os contatos passaram a acontecer somente por e-mails, limitados a três linhas por mensagem.
Se for comprovado que houve agravamento de problemas mentais nos detentos em decorrência das restrições impostas pelo pacote anticrime, a lei pode ser considerada inconstitucional por instituir uma espécie de pena cruel, diz Rauber.
A comprovação da inconstitucionalidade depende de uma avaliação do próprio regime. Precisamos saber se a cessação do contato social significativo por um tempo prolongado pode gerar transtornos mentais ou agravar condições mentais preexistentes. É o que parece que ocorre no sistema penitenciário federal
Alexandre Kaiser Rauber, defensor público federal
Socióloga critica permanência prolongada em presídios federais
A socióloga Thandara Santos, que integra o conselho de administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, critica o que entende ser um prolongamento de penas cumpridas em presídios federais —as unidades abrigam detentos apontados como chefes das principais facções criminosas do país.
Já está claro que essa ideia do sistema penitenciário federal como antídoto contra a criminalidade não faz sentido. Essas supostas lideranças são retiradas, isoladas e substituídas rapidamente. Não estamos falando de algo que realmente abale a estrutura das organizações criminosas
Thandara Santos, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Segundo ela, as prisões de segurança máxima foram projetadas para receber presos por um ano. Entretanto, 50% deles estão nessas unidades em períodos superiores.
“A ideia seria de excepcionalidade. Seria necessário apresentar uma justificativa clara para mantê-lo nessas condições. Mas o isolamento está virando regra, com prorrogações indefinidas e automáticas”, critica.
“É tortura”, diz perito judicial
Presidente do Instituto de Criminalística e Ciências Policiais da América Latina, o perito judicial e psiquiatra forense José Ricardo Bandeira elaborou um parecer técnico sobre o isolamento prolongado nas penitenciárias federais, constatando crime de tortura.
O conteúdo, concluído em 30 de agosto, foi anexado a petição enviada à OEA (Organização dos Estados Americanos), que agora cobra providências do governo brasileiro.
Ele também critica as sanções de RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), adotadas nas penitenciárias de segurança máxima para punir, que submetem os detentos a períodos de até 30 dias de isolamento, sem direito a sair da cela e com iluminação solar reduzida.
“Como o estado espera ressocializar, se isola esse preso?”, questiona. “É abusivo submeter o preso a longos períodos nesse regime de isolamento total. Essa punição é equivalente à pena de tortura, segundo as convenções internacionais”, afirma.
Remédio causa dependência, diz psiquiatra
O índice de detentos em presídios federais que faz uso contínuo de medicamento para lidar com a ansiedade atrás das grades é cinco vezes maior em comparação ao encontrado em todo o país. Segundo a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), há cerca de 20 milhões de brasileiros que têm dependência da medicação país —cerca de 10% da população.
“É uma medicação controlada para ser usada por um período curto de três meses, com reserva técnica em alguns casos. Com o uso diário, já desenvolve dependência”, alertou o psiquiatra Cláudio Meneghello Martins, vice-presidente da ABP.
Sobre o uso em massa do medicamento em presídios federais constatado pela DPU, ele afirmou que “a repressão exagerada torna mais difícil a chance de ressocialização do detento. As prisões não podem ser transformadas em campos de concentração”.
O UOL procurou o Ministério da Justiça e o Depen (Departamento Penitenciário Nacional) para que se manifestassem sobre medidas adotadas após o relatório da DPU que cita o uso de medicamentos controlados nas penitenciárias federais. A reportagem também fez questionamentos sobre as sanções de isolamento. Mas não obteve resposta.