Dinheiro destinado ao SUS é usado para beneficiar aliados do governo no Congresso
Diante da pandemia de Covid-19, o governo de Jair Bolsonaro entregou a aliados no Congresso…
Diante da pandemia de Covid-19, o governo de Jair Bolsonaro entregou a aliados no Congresso o controle do dinheiro destinado a serviços de saúde nos estados e municípios. Fonte de recursos utilizados para bancar compras de ambulâncias, atendimentos médicos e construção de hospitais, o Fundo Nacional de Saúde (FNS) distribuiu em 2021 boa parte dos R$ 7,4 bilhões em emendas de relator a redutos eleitorais de caciques do Centrão, ignorando critérios técnicos. Segundo o relator do Orçamento deste ano, deputado Hugo Leal (PSD-RJ), o FNS se tornou um “instrumento de negociação” política:
— Por que municípios recebem mais e outros menos? Porque o líder ou o deputado está colocando mais no município que interessa para ele. Isso (critério) é político.
Procurado, o Ministério da Saúde não comentou.
Com a expansão do poder do Congresso sobre o Orçamento e o avanço da pandemia, a quantia em emendas que irriga o FNS cresceu 112% entre 2019 e 2021. Quase metade desse aumento se deu via orçamento secreto, mecanismo por meio do qual é distribuída, de forma desigual, recursos entre parlamentares, dando poder de barganha ao governo e a seus aliados na cúpula do Congresso.
Parte dos pagamentos do FNS ocorre numa modalidade conhecida como “transferência fundo a fundo”. Funciona assim: o dinheiro do Orçamento vai para o fundo nacional e, de lá, é repassado diretamente para um fundo estadual ou municipal de saúde. Dessa forma, a verba indicada por deputados e senadores se mistura a outras fontes de recursos, o que dificulta a identificação dos gastos. Outro atrativo para parlamentares é que a transferência acontece de forma mais célere. Na maioria dos casos, chega à prefeitura em questão de dias, enquanto emendas direcionadas a outros órgãos levam até anos para serem liberadas.
A distribuição de recursos por critérios políticos beneficia cidades com padrinhos influentes no governo, como São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, que lidera o ranking das que mais receberam verba parlamentar do FNS no ano passado. O município é reduto de Altineu Côrtes (RJ), líder na Câmara do PL, partido de Bolsonaro, e foi o destino de R$ 133 milhões em emendas parlamentares. A maior parte — R$ 111 milhões — é oriunda do orçamento secreto. O valor é sete vezes superior aos R$ 14 milhões direcionados à capital fluminense. A discrepância fica evidente ao comparar as populações: o Rio tem 6,7 milhões de habitantes, enquanto São Gonçalo, 1,2 milhão.
O favorecimento gerou dividendos políticos a Côrtes, exaltado pelo prefeito, Capitão Nelson (PL), nas redes sociais.
— Queria aqui agradecer ao deputado federal Altineu por todas as emendas que ele tem conseguido, lá em Brasília, trazer para o nosso município — comemorou Nelson.
Procurada, a prefeitura de São Gonçalo afirmou que os valores se justificam porque o orçamento da cidade é “extremamente baixo” e porque houve “aumento de despesa considerável” por causa da pandemia de Covid-19.
Altineu disse que “sempre” pediu recursos para São Gonçalo e para a vizinha Itaboraí, contemplada com R$ 39 milhões para custear seu sistema de saúde, quase metade (R$ 18 milhões) por meio do orçamento secreto.
— Acho que eu pedi muito mais do que isso. Mas não sei com quantos eu fui atendido — afirma o parlamentar.
A distorção fica clara ao se comparar os valores de emendas do FNS destinados a Niterói, a 34 quilômetros de Itaboraí. Com mais que o dobro da população de Itaboraí, Niterói é governada por Axel Grael, do PDT, partido que faz oposição a Bolsonaro, e recebeu R$ 10 milhões em 2021, sendo R$ 3 milhões do orçamento secreto.
— É lamentável. Deturpa o princípio do SUS. A gente contava com um repasse muito maior. É uma distorção — diz Grael.
Procurado, o prefeito de Itaboraí, Marcelo Delaroli (PL), afirmou que sua cidade recebeu mais do que outras porque “precisa de recursos para reconstruir setores essenciais à população”.
Cotão
Segundo parlamentares ouvidos pelo GLOBO, coube ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a função de definir a “cota” a que cada bancada teria direito de enviar às suas cidades via FNS.
Definida a divisão por legenda, de acordo com os parlamentares, o líder da bancada distribuía o montante entre os deputados ou senadores do grupo, que votam no Congresso de acordo com interesses do Planalto. A partir daí, a liberação dos recursos é determinada pelo governo. Para o dinheiro ser desembolsado pelo FNS é preciso que o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, assine uma portaria. Segundo O GLOBO apurou, a palavra final é dada pelo chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, do PP.