Antes da avalanche no Himalaia, Índia ignorou alertas sobre riscos
Cientistas avisaram que ecossistema estava fragilizado demais para suportar grandes projetos de desenvolvimento
Muito antes de as inundações chegarem, arrastando centenas de pessoas e destruindo pontes e barragens recém-construídas, os sinais de perigo já estavam claros.
A cordilheira do Himalaia vem esquentando em velocidade alarmante há anos, derretendo gelo contido por milênios em geleiras, no solo e nas rochas e elevando o risco de enchentes e deslizamentos de terra devastadores.
Cientistas avisaram que os moradores das proximidades corriam risco e que o ecossistema da região estava fragilizado demais para suportar grandes projetos de desenvolvimento.
O governo indiano, porém, passou por cima das objeções de especialistas e dos protestos da população local, explodindo rochas e construindo hidrelétricas em áreas voláteis como aquela onde ocorreu a avalanche no domingo (7), no estado de Uttarakhand, no norte do país.
Autoridades informaram na segunda (8) que foram recuperados os corpos de 26 vítimas, enquanto as buscas por quase 200 desaparecidos continuam. Uma enxurrada de água e destroços desceu pelos vales montanhosos íngremes do rio Rishiganga, aniquilando tudo em seu caminho. As vítimas eram, em sua maioria, operários nas obras de hidrelétricas.
Moradores de vilarejos disseram que as autoridades responsáveis pelos projetos de desenvolvimento da região não os prepararam para o que estava por vir, difundindo um falso senso de confiança de que não aconteceria nada.
“O governo não ofereceu ao vilarejo nenhum programa ou treinamento para administrar um desastre”, disse Bhawan Singh Rana, chefe do vilarejo de Raini, um dos mais que sofreu os maiores impactos. “Nosso vilarejo está em cima de rochas. Nosso medo é que elas possam deslizar a qualquer momento.”
As forças de segurança direcionaram seus esforços para um túnel onde 30 pessoas estariam presas, e alimentos foram lançados pelo ar para 13 vilarejos cujas estradas de acesso foram bloqueadas e onde há 2.500 pessoas isoladas.
A devastação das inundações em Uttarakhand voltou a chamar a atenção para o frágil ecossistema do Himalaia, onde milhões de pessoas estão sentindo o impacto do aquecimento global.
O Banco Mundial avisou que a mudança climática pode prejudicar gravemente as condições de vida de até 800 milhões de pessoas no sul da Ásia. Mas os efeitos já estão sendo sentidos, frequentemente de modo letal, em grandes extensões na cordilheira do Himalaia, do Butão ao Afeganistão.
A região tem cerca de 15 mil geleiras, e elas estão recuando entre 30 e 60 metros por década. O gelo derretido expande ou cria milhares de lagos glaciais que podem romper repentinamente a barreira de gelo e os escombros rochosos que as contêm, provocando inundações catastróficas.
Grande número de lagos glaciais no Nepal, Butão, Índia e Paquistão já foi classificado como um perigo iminente pela entidade intergovernamental Centro Internacional de Desenvolvimento Montanhoso Integrado.
O Nepal é especialmente vulnerável ao problema; a mudança climática vem forçando vilarejos inteiros no país a migrar para terras mais baixas para poderem sobreviver à crise hídrica crescente. Inundações imprevistas e mortíferas vêm ocorrendo com mais frequência, algumas delas causadas pelo rompimento de barreiras de lagos glaciais.
Cientistas já lançaram avisos reiterados de que a construção de projetos de desenvolvimento na região é uma aposta de alto risco, com potencial para agravar a situação.
Ravi Chopra, diretor do Instituto de Ciência Popular, em Uttarakhand, disse que um grupo de especialistas criado pelo governo em 2012 recomendou que não fossem construídas barragens na bacia de Alaknanda-Bhagirathi, que abrange o rio Rishiganga.
Chopra fez parte de um comitê de cientistas nomeados pela Suprema Corte da Índia em 2014 e que também desaconselhou a construção de barragens na chamada “zona paraglacial”, que ele descreveu como uma área em que o chão do vale fica a mais de 2.100 metros acima do nível do mar.
“Mas o governo optou por construir as barragens mesmo assim”, ele disse. As duas hidrelétricas atingidas pela inundação do domingo foram construídas nessa zona. Uma delas foi completamente destruída e a outra, gravemente danificada.
O cientista D.P. Dobhal, ex-funcionário do Instituto Wadia de Geologia do Himalaia, pertencente ao governo, disse: “Quando construímos projetos no Himalaia como hidrelétricas, estradas ou ferrovias, os dados de estudos das geleiras nunca são incluídos ou levados em conta nos relatórios detalhados dos projetos”.
O governo está construindo mais de 800 km de rodovias em Uttarkhand para melhorar o acesso a vários importantes templos hindus, apesar das objeções de ambientalistas ao desmatamento maciço necessário, que pode acelerar a erosão e aumentar a possibilidade de deslizamentos de terra.
Um comitê nomeado pela Suprema Corte da Índia e chefiado por Chopra concluiu no ano passado que, ao construir a rodovia com largura de 10 metros, o governo contrariou a recomendação de seus próprios especialistas do ministério dos Transportes.
O governo argumentou que uma rodovia mais larga garante mais dividendos econômicos e é necessária para o potencial envio de equipamentos militares de grande porte para a fronteira disputada com a China.
Quando a Suprema Corte decidiu que a rodovia não poderia passar de 5,5 metros de largura, centenas de hectares de floresta e dezenas de milhares de árvores já haviam sido derrubadas, segundo reportagem do site de notícias indiano The Scroll.
“Quando você tem especialistas de seu próprio ministério lhe dizendo que as estradas na região do Himalaia não podem ter uma superfície asfaltada de mais de 5,5 metros de largura, e então você passa por cima das recomendações deles, é um problema sério”, disse Chopra. “A não ser que os tribunais estudem a possibilidade de punir e responsabilizar autoridades pessoalmente, acho que a situação não vai mudar.”
Trivendra Singh Ranwat, ministro chefe de Uttarakhand, disse que as inundações não devem ser vistas como “razão para construir uma narrativa antidesenvolvimentista”.
“Reitero o compromisso de nosso governo em desenvolver as montanhas de Uttarakhand de maneira sustentável”, disse Rawat no Twitter. “Faremos tudo e passaremos por cima de todos os obstáculos para garantir que essa meta seja alcançada.”
O vilarejo de Reini ficava em uma das áreas mais atingidas no domingo, quando a hidrelétrica de Rishiganga, de 13 megawatts, foi totalmente destruída. Depois da enxurrada, cem dos 150 moradores do povoado passaram a noite ao relento.
“Não dormimos nas nossas casas, temendo que venha mais água, que as rochas sejam deslocadas, que alguma coisa mais perigosa aconteça”, disse Rana, o chefe do vilarejo. “Levamos nossas cobertas para a floresta, fizemos algumas fogueiras e passamos a noite assim.”
Nos anos 1970 a área foi palco de um protesto ambientalista contra o desmatamento, algo que estampou as manchetes do noticiários. Manifestantes, muitas delas mulheres, abraçavam árvores para impedir que fossem derrubadas. O movimento ficou conhecido como “chipko”, ou abraço.
Rana disse que os moradores da vila também fizeram protestos contra a construção da hidrelétrica de Rishiganga, que começou a gerar eletricidade no ano passado. Chegaram a mover ações judiciais, mas isso não surtiu efeito. Eles temiam que a explosão de rochas provocasse deslizamentos de terra com efeitos fatais.
“Ouvíamos explosões e víamos as rochas se movendo”, disse. “Quando esta hidrelétrica estava sendo construída, metade de nosso vilarejo foi levado num deslizamento. Pedimos para ser transferidos para outro local. O governo disse que faria isso, mas não aconteceu nada.”