DÓLARES EM JOGO

Auditoria aponta irregularidades em licitações da OMS na pandemia

Centro da apuração está o esforço da OMS em comprar insumos que seriam enviados aos países mais pobres do mundo

Foto: Martinal Trezzina

Uma auditoria externa realizada na OMS (Organização Mundial da Saúde) retrata uma organização com sérias falhas administrativas e “transgressões” em contratos com milhões de dólares em jogo.

No centro da apuração está o esforço da OMS em comprar máscaras, luvas e material de proteção que seriam enviados aos países mais pobres do mundo em 2020, ainda nos primeiros meses da pandemia da covid-19.

Não há referências à corrupção ou desvios de verbas. Mas o relatório é contundente: critérios de licitações foram alterados no meio do processo, houve conflito de interesse e operações de compra ocorreram quatro meses antes de contratos terem sido formalizados.

No centro da pior pandemia em um século, a OMS tem sido pressionada a passar por amplas reformas. Comitês independentes também destacaram nas últimas semanas um fracasso coletivo em dar uma resposta à crise sanitária, propondo que a própria estrutura da agência seja repensada.

Mas o que a nova auditoria revela é que os problemas não foram apenas políticos. “Observamos várias transgressões na seleção e contratação de uma empresa de consultoria. A empresa estava ajudando a OMS na aquisição de equipamentos de proteção individual, sem a devida aprovação, embora isso implicasse no pagamento de US$ 2,53 milhões”, disse a auditoria, que foi submetida aos governos.

Cobrada pelos auditores, a OMS tentou explicar suas decisões, insistindo que as medidas tomadas tinham como objetivo garantir o abastecimento de países que passavam por necessidades. Mas indicou que está revendo seus processos e que está aprimorando suas operações.

De acordo com a auditoria, foi observado ainda “deficiências nas garantias de qualidade e avaliação técnica na aquisição emergencial de equipamentos de proteção”.

Contratos envolviam milhões de dólares

O que a auditoria revela não é apenas um aspecto marginal do trabalho da OMS. Durante o ano de 2020, as despesas totais com serviços contratuais foram de US$ 986 milhões, o que o tornou o segundo item de despesa mais alto após os custos de pessoal na OMS.

Parte desse desembolso não ocorre diretamente pela organização na compra de materiais. Tradicionalmente, a agência contrata empresas de consultoria que, por sua vez, fazem a intermediação para a compra dos produtos.

“Contratos de consultoria no valor de US$ 332,79 milhões foram assinados em 2020. Oito contratos com um valor total de US$ 11,72 milhões foram colocados com uma empresa de consultoria A, dos quais dois contratos de alto valor, no valor de US$ 5,40 milhões, foram selecionados para um exame detalhado”, explicou.

O nome da empresa não foi revelada. Mas os auditores confirmaram que esses contratos estavam relacionados “às aquisições de emergência” para lidar com a pandemia.

“No início da pandemia em março de 2020, o Consultor A ofereceu serviços ‘pro bono’ para ajudar a OMS na aquisição e fornecimento de equipamento de proteção. A OMS aceitou a oferta e contratou o Consultor A”, diz ele a auditoria.

O custo total do trabalho foi de US$ 7,3 milhões, dos quais 55% (US$ 4,03 milhões) deveriam ser bancados por Consultor A, 35% (US$ 2,53 milhões) pela OMS e cerca de 10% (US$ 0,73 milhões) pela The Bill & Melinda Gates Foundation.

Mas a auditoria rejeitou o argumento de que a operação foi “pro bono”. “Somos de opinião que chamar este compromisso pro bono não é correto porque o consultor A propôs um projeto de US$ 7,30 milhões no qual a OMS foi obrigada a comprometer US$ 2,53 milhões”, afirma.

Operação sem aprovação

Oficialmente, em uma primeira etapa, o objetivo do trabalho da empresa A era ajudar a OMS a desenvolver suas capacidades de gerenciamento da cadeia de abastecimento na pandemia. Mas os auditores ressaltam que “a natureza do trabalho realizado pelo Consultor A em todas as fases foi a mesma, o que incluiu a produção regular de previsões de fornecimento, monitoramento de embarques, coleta de informações sobre os fornecedores e o mercado, e assistência à OMS em todas as etapas de compras”.

Uma das tarefas declaradas pelo Consultor A foi a identificação dos fornecedores de equipamentos de proteção. Entretanto, durante o mesmo período, em 5 de maio de 2020, a OMS havia assinado uma Carta de Intenções com a firma C, para ajudar na aquisição e compra de equipamentos.

“Observamos que o Consultor A foi contratado e começou a trabalhar sem a devida aprovação, apesar de implicar o pagamento de US$ 2,53 milhões pela OMS. A proposta para aprovação foi iniciada quase quatro meses depois que o Consultor A começou seu trabalho e depois que três das quatro fases foram concluídas”, diz o relatório.

Processo de licitação e mudança de critérios

A revisão dos contratos também apontou questões sobre o processo de seleção da Empresa A. No processo de licitação, duas empresas foram selecionadas para a fase final. Mas quem obteve o maior número de pontos não ficou com o contrato.

“O consultor D obteve a maior pontuação total e, portanto, a consultoria deveria ter sido concedida à Consultora D. Entretanto, a OMS alterou os critérios de avaliação e reavaliou as propostas de acordo. Isso permitiu que Consultora A obtivesse uma pontuação mais alta e o contrato foi concedido à consultoria”, diz a auditoria.

A justificativa dada pela OMS foi que o Consultor D em sua proposta financeira havia apenas estimado um custo preliminar. Já o Consultor A tinha licitado de forma abrangente.

Mesmo assim, os auditores concluíram que “a justificativa e avaliação das propostas não estavam em conformidade com as disposições do Manual de Compras da OMS e violava as normas de compras públicas”.

“Alterar a exigência técnica ou o escopo do trabalho, a partir do que foi declarado e alterar os critérios de avaliação no momento da avaliação viola os princípios das compras públicas e vicia o processo de licitação”, concluiu.

Conflito de interesses

As “transgressões” também foram encontradas em outros aspectos do processo. Os auditores observaram que o Consultor A estava envolvido na preparação dos documentos de licitação e tinha dado contribuições à gerência sênior da OMS. “O envolvimento do Consultor A no processo de aquisição, no qual a própria empresa foi licitante, é um conflito de interesses”, constata a avaliação.

Além disso, ao mesmo tempo que a consultoria contratada prestou assistência à OMS, ela também negociava com os fornecedores.

Foram identificadas ainda “deficiências” na aquisição de suprimentos e materiais médicos.

As despesas com suprimentos e materiais médicos duplicaram em 2020 em comparação com os anos anteriores. Ordens de compra no valor de US$ 866,72 milhões foram feitas durante 2020, dos quais US$ 776,19 milhões (90%) foram compras de emergência. Cerca de 82,76% (US$ 717,29 milhões) dos itens de emergência adquiridos eram itens não catalogados na OMS.

Ao concluir sua avaliação, os auditores reconheceram que 2020 foi “um ano anormal” para o setor médico, com rupturas no mercado e na cadeia de abastecimento devido a um aumento da demanda e escassez de abastecimento.

“A logística também foi impactada. Com o desenrolar da pandemia, a OMS empreendeu a onerosa tarefa de adquirir e estocar itens de emergência contra a covid-19, apesar de sua capacidade limitada”, disse.

De acordo com eles, algumas das deficiências poderiam ser atribuídas à situação “desafiadora e sem precedentes”. Mas os auditores sugerem que suas conclusões sejam usadas “para fortalecer o sistema de aquisição e preparação para emergências”.