Classe média da América Latina se vê em risco diante da crise provocada pela Covid-19
Em recente relatório, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) projetou…
Em recente relatório, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) projetou um aumento do desemprego de 3,4 pontos para este ano na região, o que representa, na vida real, a perda de 11,5 milhões de postos de trabalho. Este é um dos indicadores que permite vislumbrar a crise em que mergulhou a classe média latino-americana após a chegada da pandemia ao continente.
Histórias como a do chileno Javier Vázquez, que até março trabalhava num bar de Santiago, dão vida aos números que a Cepal, universidades e consultorias econômicas privadas vêm divulgando. Sem emprego, Javier vive do dinheiro que economizou fazendo biscates e da venda de objetos pessoais. Teve a sorte de ter seu aluguel reduzido e, por isso, ainda não se mudou para a casa de algum amigo ou parente, como fizeram muitas pessoas que conhece.
No Chile, como em todos os países latino-americanos, a situação social é crítica. O presidente Sebastián Piñera convocou um grande acordo nacional e dirigentes da oposição, como o ex-chanceler Heraldo Muñoz, destacaram a necessidade de pensar na classe média e não apenas nos setores mais humildes.
— Existe fome no Chile e o governo deve dar uma resposta. Muitas famílias de classe média não estão mais recebendo seus salários como antes e estão empobrecendo — declarou o líder do Partido pela Democracia (PPD), integrado, entre outros, pelo ex-presidente Ricardo Lagos (2000-2006).
Inadimplência
Isso é o que demandam pessoas como Javier, que sentem que a classe média não está sendo protegida pelo Estado. Quando suas economias acabarem, ele depende de conseguir algum emprego ou, como muitos outros, ficará abaixo da linha da pobreza.
— Tenho vendido algumas coisas minhas, como cadeiras antigas, costumo me virar. Além de trabalhar no bar, vendia mel e um tipo de sal especial, que se consegue apenas numa região do Chile. Mas tudo isso está parado e sem ajuda não sei o que vou fazer — desabafou.
Na Argentina, a crise da classe média é percebida, por exemplo, no mercado imobiliário. De acordo com a Federação Nacional de Inquilinos, em maio 59% dos inquilinos não conseguiram pagar os aluguéis. No mês anterior, o percentual tinha sido de 42%. René Jimenez tem uma imobiliária no bairro de Palermo e todos os dias deve lidar com conflitos entre proprietários e inquilinos.
— Os aluguéis comerciais foram quase todos cancelados, as pessoas fecharam seus comércios e ficaram zeradas, sem dinheiro algum. No caso dos residenciais, alguns conseguiram renegociar e, entre os que não conseguiram, muitos saíram e foram morar com a família — explicou a corretora.
O governo do presidente Alberto Fernández aprovou um decreto que proíbe os despejos até setembro. Protegidos, muitos inquilinos deixaram de pagar, mas continuam morando nos apartamentos e casas alugadas.
A Argentina já tem uma das quarentenas mais longas do mundo. Se não for novamente prorrogada em 28 de junho, data estabelecida como limite pela Casa Rosada, terão sido 101 dias de paralisia quase total da economia.
Na visão do economista Martin Tetaz, pesquisador da Universidade Nacional de La Plata (UNLP), “a dimensão final do impacto sobre a classe média ainda não está clara. Dependerá da saída da quarentena e da demora do país em retomar suas atividades”. A Casa Rosada também proibiu demissões e a grande incógnita é saber o que acontecerá quando as empresas tiverem sinal verde para ajustar.
— Há algumas semanas, permitiram a reabertura de 60% do comércio em Buenos Aires, mas apenas 40% reabriram. Isso já mostra o tamanho do buraco — comentou Tetaz.
Trabalho informal
Para o pesquisador da UNLP, “houve pouca assistência do Estado para os setores médios, tanto pessoas jurídicas como pequenas e médias empresas”.
— Foram concedidos créditos, mas eles chegaram a poucos beneficiários. Os que estão resistindo são os que têm economias — afirmou.
Em países como o Peru, onde a classe média depende, em grande medida, do mercado informal de trabalho, a tragédia social é grande. Estima-se que sete de cada dez peruanos vivem na informalidade essas pessoas, apontou o analista Luis Davelouis, “passaram a viver na pobreza ou pobreza extrema”.
Muitos abandonaram a capital, Lima, e rumaram para suas cidades natais, onde podem contar com alguma ajuda familiar. O processo de migração rural interna no Peru é cada vez mais acentuado.
— A quantidade de pessoas que pediu o bônus de US$ 100 do governo é incrível e mostra o drama da classe média. Temos em torno de 8 milhões de pessoas que ficaram desamparadas com a crise — afirmou Davelouis.
São pessoas, enfatizou, “que empobreceram num período de duas a três semanas”.
Esse é justamente o calcanhar de Aquiles da classe média latino-americana, sua vulnerabilidade, sustentou Simone Cecchini, diretor da Divisão de Desenvolvimento social da Cepal. Ele destacou que muitos latino-americanos vivem um pouco acima da linha da pobreza e com a crise foram rebaixados em tempo recorde.
— Temos uma classe média muito endividada, sem proteção social nem renda garantida. Os 28,7 milhões de novos pobres que teremos este são estas pessoas, ex-classe média precária — disse Cecchini.
O economista da Cepal esclareceu que todos os dados divulgados até agora são preliminares e que poderiam ser piores se a crise se prolongar.
— É fundamental ter uma política de emergência também para a classe média. A crise é tão grande que claro que os governos começaram pelos mais pobres, mas é preciso pensar nos setores médios, porque nossa classe média não resiste uma crise como esta — concluiu Cecchini.