TRAGÉDIA

Crianças morrem no Haiti enquanto esperam visto para viajar ao Brasil

Jameson Blanc, 29, conheceu seu filho Raynju Riguelme por apenas alguns dias. Logo depois do…

Jameson Blanc, 29, conheceu seu filho Raynju Riguelme por apenas alguns dias. Logo depois do parto, em 2019, o haitiano migrou para o Brasil, onde esperava juntar dinheiro para trazer a esposa e a criança. Em setembro de 2021, o imigrante, que trabalha em Joinville (SC), pediu um empréstimo e começou a tentar o processo de reunificação familiar. Não deu tempo: Raynju ficou doente e acabou morrendo, aos dois anos, no início de 2022.

“Ele teve uma febre muito forte, tipo uma infecção. Passou meses internado, mas faleceu”, diz Jameson, que nunca soube a causa da morte do filho. Agora, Blanc tenta trazer a mulher ao Brasil, mas não conseguiu vencer a burocracia. “Ela ficou bastante abalada com tudo o que aconteceu.”

Nascidos em um país devastado por desastres naturais e pela pobreza, haitianos têm direito a um visto de acolhida humanitária no Brasil, que foi renovado há dois meses. Eles também podem trazer seus parentes, que precisam obter um visto de reunião familiar.

Com o agravamento da instabilidade política, econômica e social no Haiti –por razões como o assassinato do presidente Jovenel Moïse, um forte terremoto em 2021 e o fortalecimento de gangues criminosas–, imigrantes que vivem no Brasil correram para tentar trazer seus filhos e cônjuges.

Mas a dificuldade para obter o visto é tanta que muitos estão aguardando há um ano e meio ou mais. A falta de voos entre os dois países é outro entrave que impede a viagem mesmo dos que estão com a documentação em dia.

O imbróglio chegou à Justiça, com milhares de ações solicitando a reunião familiar urgente sem a necessidade de passar pela burocracia usual. Alguns voos fretados já trouxeram passageiros que obtiveram liminares, a maioria crianças que vieram se unir aos pais.

Nos processos, os advogados alegam que o visto, concedido na embaixada brasileira em Porto Príncipe, é praticamente impossível de se obter, devido à dificuldade de agendamento –a demanda, que já superava em milhares de vezes a oferta de vagas, ficou ainda maior com a suspensão de novos pedidos durante 15 meses em decorrência da pandemia.

Também há denúncias de cobrança de propina para acessar a representação diplomática, algo que chegou a ser investigado pelo governo brasileiro em anos anteriores.

Os advogados argumentam que a reunião familiar é garantida pela Lei de Migração e por tratados internacionais assinados pelo Brasil. “É um direito consagrado por lei. O Brasil trata tudo como visto, mas deveria ser um processo separado”, defende a advogada Débora Pinter, que representa centenas de famílias. “Eles tentam agendar online, mas o sistema trava.”

Pinter e outros advogados vinham conseguindo sentenças favoráveis. Em abril, porém, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, entendeu que os haitianos não têm direito a trazer familiares fora do procedimento burocrático tradicional, sob a alegação de “risco de comprometimento da política migratória nacional”. À época, a Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina divulgou uma nota criticando a decisão, que considera inconstitucional.

O efeito dessa sentença sobre tribunais inferiores fez cair drasticamente a aprovação de pedidos –Aline Jamile Nossabein, outra advogada, estima que a queda tenha sido de 70%. Ela já conseguiu trazer mais de cem haitianos para reunião familiar via processo judicial, mas atende centenas que estão aguardando.

Nossabein mostrou à Folha fotos, vídeos e relatos que recebe de seus clientes. As histórias incluem familiares que morreram enquanto esperam, massacres na vizinhança de suas casas e crianças vivendo em barracas precárias. “Perdi muitos clientes neste ano. Pessoas que se matam, morrem por bala perdida, infecção.”

Para ela, o sistema é ineficiente. “As vagas somem em menos de um minuto. Temos clientes que estão há dois anos tentando. Não existe outra possibilidade que não seja por via judicial”, afirma. “E são pessoas com carteira de trabalho assinada, que provam que vão sustentar os familiares aqui. Deveriam ser prioridade.”

Segundo o Itamaraty, a embaixada em Porto Príncipe é o posto diplomático brasileiro que mais expede vistos no mundo. Foram quase 12 mil em 2020 e 2021, “apesar das dificuldades advindas da pandemia da Covid-19”, diz a pasta.

O ministério cita um acordo feito em 2015 com a Organização Internacional para as Migrações (OIM). A entidade ficou responsável pelo pré-processamento de vistos na capital haitiana, por meio de um site controlado de sua sede, na Suíça, para inibir fraudes.

Enquanto isso, familiares dos imigrantes haitianos sofrem uma rotina de privações e violência. Morador de Caxias do Sul (RS), Abner Pierre, 42, tenta há meses trazer os três filhos para perto dele e de sua esposa. A mais velha, Rosedarling, tinha 19 anos quando foi morta em um assalto há algumas semanas.

“Ela saiu para buscar um telefone e foi abordada por dois bandidos”, conta Pierre. Os dois outros filhos, de 9 e 12 anos, estavam com a avó, mas ela está doente e não pode mais cuidar deles. “Estou sofrendo demais. Há muito tempo tento o visto para as crianças, mas nunca consigo. Tenho medo de que algo aconteça com elas. O Haiti é um inferno.”

Uma das entrevistadas, Meloune Duclair, 37, chorou ao falar com a reportagem. A haitiana trabalha em um frigorífico em Braço do Norte (SC) e tenta trazer as filhas de 5 e 15 anos. Elas eram cuidadas por uma tia, que está hospitalizada após sofrer um acidente. “As meninas estão em casa sem um adulto, passando fome. Eu mando dinheiro [por intermediários], mas muitas vezes não entregam para elas. Não sei o que fazer, estou ficando louca de preocupação.”

Relembre tragédias que assolam o Haiti

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Violência de gangues”

Grupos criminosos armados aterrorizam a população com sequestros, assassinatos, extorsões e violência sexual e vêm ampliando o controle territorial. Estima-se que dominam mais da metade do país

Covid-19″

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