É difícil encarar morte sem cadáver para enterrar, diz pai de brasileiro morto no 11 de Setembro
Conversa sobre altura das Torres Gêmeas assombra médico até hoje; outras 4 vítimas eram do país
“Aquele negócio começou de manhã, entre 9h e 10h. Eu já estava aqui no consultório”, lembra o médico Ivan Fairbanks Barbosa, 80. Eram 8h46 em Nova York (uma hora a menos em relação ao fuso de Brasília) quando o primeiro Boeing atingiu a torre norte do World Trade Center, entre os andares 93 e 99.
O filho de 30 anos do médico, Ivan Kyrillos Fairbanks Barbosa, estava naquele momento a 7.600 quilômetros de distância do pai, mas apenas seis andares acima desse primeiro choque. Ele, que trabalhava negociando papéis na corretora Cantor Fitzgerald, no 105º andar daquela torre, é um dos cinco brasileiros mortos nos atentados de 11 de Setembro, 20 anos atrás.
Um mês e meio antes dos ataques, Ivan filho havia convidado Ivan pai para conhecer o WTC. Na ocasião, Barbosa brincou com o rapaz: “Filhinho, papai não vai deixar você trabalhar aqui se não tiver uma asa-delta no escritório”.
De alguma forma, aquela conversa sobre altura do prédio assombra Barbosa ainda hoje. “O que me angustiou muito foi imaginar algum parente pulando lá de cima”, disse, em entrevista nesta semana no Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, onde atua como otorrinolaringologista. O médico se refere às pessoas que, encurraladas pelo fogo e pela fumaça, saltaram dos andares superiores do complexo. Ninguém que estava acima do local do choque e da explosão teve chances de descer até que a estrutura desabasse, uma hora e 42 minutos depois.
Estima-se que entre 100 e 200 pessoas tenham saltado naquela manhã. As autoridades americanas não consideram essas mortes como suicídios, mas como pessoas expulsas pelo fogo. Barbosa não tem nenhuma informação de que isso possa ter acontecido com Ivan, mas a possibilidade ainda o incomoda.
Alguns meses após os ataques, a família recebeu um kit para reconhecimento de DNA, enviado pelas autoridades americanas.
Tempos depois, ele se reuniu em Nova York com Ken Feinberg, advogado responsável por estabelecer um valor de indenização para as famílias de cada vítima. Na semana passada, a Netflix estreou o filme “Worth – Quanto Vale?”, contando justamente essa história, com Michael Keaton no papel de Feinberg. A corretora Cantor Fitzgerald é citada com uma das empresas que perderam muitos funcionários.
“Ele me impressionou pelo raciocínio direto e simples. Para aquele homem, dois mais dois são quatro e não tem conversa. Eu e minha ex-exposa fomos entrevistados por ele, falamos sobre Ivan e percebi que ele se emocionava também.” As indenizações somaram US$ 7,4 bilhões, divididos entre 97% das famílias das vítimas.
Outra brasileira trabalhava na Cantor, ao lado de Ivan Kyrillos Barbosa. Anne Marie Sallerin Ferreira, 29, havia se mudado de Londres com seu marido alguns meses antes e conheceu Ivan na comunidade de brasileiros que atuavam no mercado financeiro. Foi ele, segundo relatos da época, que a indicou para o novo emprego em Nova York.
A Folha conseguiu contato com a irmã de Anne Marie, mas a família nunca falou com a imprensa —desta vez não foi diferente. “Nós não damos entrevistas, espero que entenda.”
Sete andares abaixo de Ivan e Anne Marie, trabalhava a mineira Sandra Fajardo Smith, 37. Ela era contadora na Marsh & McLennan, empresa de seguros e gerenciamento de riscos que funcionava no 98º andar da torre norte.
Sandra já estava nos EUA havia 13 anos quando morreu, tendo trabalhado como garçonete, concluído um curso em ciências econômicas e galgado posições no escritório. Talvez por estar em um dos andares diretamente atingidos pelo avião, ela foi a primeira brasileira oficialmente reconhecida como vítima do 11 de Setembro, seguida de Ivan e Anne Marie.
Outros dois não constam da lista oficial e não tiveram seus nomes inscritos na pedra do memorial que hoje ocupa o local dos prédios. Um deles é o engenheiro capixaba Nilton Albuquerque Fernão Cunha, de 41 anos.
Ele estava três andares acima de Ivan e Anne Marie, no escritório de uma empresa japonesa no 108º. Cunha trabalhava de forma autônoma para empresas interessadas em importar componentes eletrônicos e, dias antes do ataque, escreveu a seu último empregador: “Estou cem andares acima do solo, dá para sentir frio”.
Ele havia viajado para ficar uma semana em Nova York. Sua passagem de volta estava marcada para o dia seguinte, 12 de setembro. Filho único e de mãe idosa e viúva, sua família no Brasil não chegou a enviar amostras de DNA para as autoridades, e seu nome acabou esquecido.
A quinta vítima, também não reconhecida, era outro mineiro, morador da periferia de Belo Horizonte. Sua mulher e seus três filhos nem sequer sabiam que Claudino Antunes Braga estava nos Estados Unidos. Ele havia entrado ilegalmente pelo México havia algumas semanas, segundo contou a um primo. Disse também que havia conseguido um emprego de engraxate no World Trade Center. Foi o último contato que fez.
“É muito difícil encarar uma morte sem um cadáver para enterrar”, lamenta o médico Ivan Fairbanks Barbosa. Até hoje, há 1.106 vítimas que não foram reconhecidas. Ele não sabe dizer quantos dias se passaram até que entendesse que seu filho havia morrido no ataque.
“As comunicações foram interrompidas, aí chegavam informações erradas, como a de que Ivan estava no hospital x. Ligávamos no lugar e nada. Essa busca durou pelo menos 15 dias, até que não havia mais informação para checar”, diz.
“Quero destacar a enorme solidariedade que recebemos, gente aqui e lá tentando ajudar e se oferecendo. Com exceção da embaixada brasileira lá, fui bem tratado por todos. Na embaixada, disseram que não tinham informações e me ligariam assim que conseguissem. Nunca recebi uma ligação.”
Onde moravam as 2.753 vítimas do atentado ao WTC