JOVENEL MOÏSE

Em meio a disputa por poder, Haiti busca como se reerguer após morte de presidente

Professores, líderes religiosos, advogados, agricultores e veteranos de crises que pensavam ter visto de tudo…

Professores, líderes religiosos, advogados, agricultores e veteranos de crises que pensavam ter visto de tudo nos últimos anos, observavam indignados enquanto a democracia pela qual lutavam murchava, destruída sob o turno do presidente Jovenel Moïse.

Os atiradores atacaram, e um país que estava à deriva agora parece sem leme. Moïse está morto, assassinado em seu próprio quarto, e os poucos líderes que restam no país estão tão ocupados disputando seu lugar que nem sequer fizeram planos para enterrá-lo. Levaram uma semana para anunciar que tinham formado um comitê para organizar a cerimônia.

“Toda essa luta”, lamentou Monique Clesca, uma ex-funcionária da ONU que se reuniu com outros líderes haitianos na terça-feira (13) nos fundos de um restaurante no verdejante subúrbio de Pétionville, a dez minutos de carro de onde o presidente foi morto.

Durante meses, enquanto o Haiti se aprofundava na crise sob o governo de Moïse, com protestos revirando o país e o Parlamento reduzido à casca na falta de eleições, o grupo de Clesca, que consultou mais de cem organizações populares, vinha se reunindo regularmente, desesperado para encontrar um plano que fizesse o país funcionar novamente. Tratamentos de saúde, um judiciário atuante, escolas, alimentos: seus objetivos eram ao mesmo tempo básicos e ambiciosos.

Agora a crise é ainda pior. Todo o foco parece ser sobre quem surgirá como próximo líder do Haiti, disse ela. Mas o grupo quer que o país pense grande, se reinvente, e construa um plano para ter um futuro diferente.

Como fizeram os haitianos em 2010, quando um terremoto matou mais de 220 mil pessoas e arrasou grande parte da capital, muitos esperam que esta crise ofereça a oportunidade de recomeçar e sonhar, só que desta vez com melhores resultados. “Este é um trauma horrível”, disse Magali Comeau Denis, uma empresária e ex-ministra da Cultura e Comunicação, dirigindo-se à reunião cívica. Mas, ela disse, “juntos, poderemos ser fortes”.

No restaurante, onde os líderes se reuniram em uma área de apresentações —havia equipamento de som e bateria montados em um palco próximo—, o ar estava pesado, mesmo com a brisa da temporada de chuvas se esgueirando. O clima era militante. A disputa por poder não ajudará em nada os haitianos comuns, disseram os líderes. “A solução política não será a verdadeira solução”, disse Comeau Denis. “Ela não levará em conta as profundas demandas da população.”

De todo modo, parecia ser a política de sempre para o Haiti na última semana. Quando os Estados Unidos, um ator importante no país há muito tempo, enviaram uma delegação no fim de semana, ela se reuniu com os três políticos que desejam assumir o poder. Mas ativistas de base que trabalham para melhorar as coisas em campo disseram que deviam participar da conversa. Alguns se animaram com o pedido por consenso feito pelo presidente Joe Biden na segunda-feira. “Os líderes políticos do Haiti precisam se unir pelo bem do país”, disse ele.

Mas os líderes cívicos reunidos na terça, conhecidos como a Comissão, admitiram que precisam de mais tempo para encontrar um consenso mais amplo sobre para onde o Haiti deve rumar. Eles pretendem realizar uma série de fóruns pelo país para receber ideias, e concordam sobre certas prioridades. Alarmados pela corrupção enraizada, os ativistas querem uma investigação sobre acusações de que o dinheiro de um programa de petróleo patrocinado pela Venezuela, chamado PetroCaribe, foi desviado.

Três relatórios condenatórios do Tribunal Superior de Auditores e Disputas Administrativas revelaram em detalhe que a maior parte dos US$ 2 bilhões emprestados ao Haiti como parte do programa foram desviados ou gastos em oito anos por uma série de governos.

Uma semana depois que o país despertou com a notícia atordoante do assassinato do presidente, a capital continua temerosa e chocada. De dia, as ruas estão novamente lotadas com o tráfego de mototáxis e “tap-taps”, os ônibus locais feitos de caminhonetes reformadas. À noite, a coisa muda. Ao anoitecer na segunda, Porto Príncipe foi envolvida em escuridão, mais parecendo a zona rural do que uma cidade pujante, com mais de 1 milhão de habitantes.

Era mais um apagão, o que ocorre com frequência cada vez maior e que Moïse tinha prometido sanar, sem sucesso. As ruas, normalmente caóticas, estavam desertas. Muitos dos que se viam faziam filas nos postos de gasolina. Os bandos que se disputam com violência na cidade tinham basicamente fechado uma das principais rodovias do país, separando a capital das reservas de combustível e causando escassez.

Na terça, um grupo de pessoas pedindo ajuda se sentou junto ao portão da Igreja de São Pedro, que fica do outro lado da praça da delegacia de polícia, para onde muitos suspeitos do assassinato foram levados. Ali, multidões revoltadas se reuniram na semana passada, pedindo justiça. “Estamos com o coração partido, ele desapareceu”, disse Dorecelie Marie Arselian, 75, sobre Moïse. Ela usava um grande chapéu de palha e olhava as crianças descalças devorando o macarrão dado a elas por bons samaritanos.

O governo do Haiti declarou 15 dias de luto nacional. Em um decreto, mandou que a bandeira seja hasteada a meio mastro e clubes noturnos e outros estabelecimentos permaneçam fechados. Ele convidou as estações de rádio e televisão a transmitir música adequada.

No Haiti, o branco é a cor do luto. Clesca vestia branco quando se reuniu com os outros ativistas na terça, mas foi coincidência, disse ela, e não para marcar a morte de Moïse. Ela usou branco durante dois anos inteiros após a morte de sua mãe em 2016.

“Uma das coisas que ela sempre dizia era: ‘Será que vou morrer sem ver um Haiti melhor?'”, lembrou Clesca. “Agora meu maior temor é o que vai acontecer com meus filhos. O que acontecerá com o Haiti? Precisamos lutar. Este é o único país que temos.”