Trump liga para autoridades da Geórgia e pede para reverterem votos a seu favor
Em gravação obtida pelo Washington Post, presidente insiste em que venceu no estado, mas é refutado por autoridade do próprio partido
A 17 dias da posse de Joe Biden na Presidência dos EUA, uma gravação obtida pelo jornal Washington Post revelou que Donald Trump pediu, de forma explícita, que as autoridades eleitorais da Geórgia mudassem os resultados da votação no estado a seu favor. A informação surge em meio a um movimento de senadores republicanos para questionar a vitória de Joe Biden no Congresso, um esforço com poucas chances de sucesso, mas que pode servir para Trump cimentar seu controle sobre o partido.
A conversa ocorreu no sábado e foi qualificada por Biden e lideranças democratas de “ataque à democracia” e “abuso de poder”. Trump pede ao secretário de Estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, que “encontre 11.780 votos” para ele, um a mais do que a vantagem de Biden no estado. A conversa foi por telefone, e o Washington Post teve acesso à gravação. A Geórgia tem 16 votos no Colégio Eleitoral, no qual Biden teve 306 votos, e Trump 232.
“O povo da Geórgia está com raiva, o povo do país está com raiva. Não há nada de errado em dizer que, você sabe, que você recalculou [os resultados]”, diz Trump. Raffensperger não cede: afirma que as informações que o presidente tem sobre a votação “estão erradas”, o que as autoridades republicanas do estado vêm repetindo desde a eleição de 3 de novembro. A Geórgia já realizou duas recontagens, e ambas confirmaram a vitória de Biden.
Trump estava acompanhado de alguns aliados, como o chefe de Gabinete da Casa Branca, Mark Meadows, um dos maiores propagadores das falsas alegações de fraude nas eleições. O presidente, , que já foi derrotado em quase 60 ações judiciais em que alegou a ocorrência de fraudes nas eleições presidenciais, mostrou mais uma vez que não aceita o fato de ter perdido para Biden nas urnas.
“De maneira alguma perdi na Geórgia”, diz ele na gravação. “Nós ganhamos por centenas de milhares de votos.” Em outro ponto, insiste: “Veja, tudo o que eu quero é isso. Só quero encontrar mais 11.780 votos, um a mais do que temos. Porque eu ganhei no estado”.
Diante das negativas de Raffensperger e de seu conselheiro jurídico, Ryan Germany, Trump sugere que os dois poderiam ser alvo de ações criminais por sua alegada falta de esforço para corroborar suas alegações.
“Isso é uma ofensa criminal. Você não pode deixar isso acontecer. Isso é um grande risco para você e Ryan, seu advogado”, ameaça Trump.
Ele sugere que uma eventual derrota dos candidatos republicanos ao Senado na Geórgia, no segundo turno marcado para a terça-feira, poderá ser creditada a Raffensperger. Essa votação decidirá qual partido estará no comando do Senado na próxima legislatura.
“Por causa do que você fez ao presidente, muitas pessoas não votarão, muitos republicanos votarão de forma negativa, uma vez que eles odeiam o que você fez ao presidente”, diz Trump.
O secretário de Estado da Geórgia e a Casa Branca não quiseram se pronunciar, mas Trump e Raffensperger protagonizaram uma áspera troca de mensagens no Twitter neste domingo. Ali, o presidente afirmou ter conversado com Raffensperger sobre supostas irregularidades na votação no condado de Fulton, onde fica Atlanta, e o acusou de “não querer” responder às indagações. O secretário de Estado foi sucinto em sua resposta. “Respeitosamente, presidente Trump: o que você está dizendo não é verdade. A verdade aparecerá.”
Segundo especialistas ouvidos pelo Post, a conversa pode acarretar problemas legais para o presidente. Suas palavras sugerem que ele tentou pressionar as autoridades da Geórgia para que fraudassem os resultados e lhe dessem a vitória. Ao mesmo tempo, o episodio levanta questões éticas.
“Ele já estava quebrando o medidor de emergências”, disse ao Post Edward Foley, professor de Direito da Universidade de Ohio, que chamou a pressão de Trump de “abjeta e inapropriada”. “Estávamos no 12 em uma escala de um a dez, agora estamos em 15.”
Um dos assessores da equipe de transição de Joe Biden, Bob Bauer, afirmou que o episódio foi uma “prova irrefutável” de um presidente fazendo ameaças contra uma autoridade de seu próprio partido para “rescindir uma contagem legal e certificada e fabricar outra em seu lugar”. “Isso captura a ampla e vergonhosa história do ataque de Donald Trump à democracia americana”, afirmou Bauer em nota.
O deputado democrata Adam Schiff, presidente da Comissão de Inteligência da Casa, disse que o presidente cometeu “abuso de poder”
— O desprezo de Trump pela democracia fica claro. Gravado. Pressionar uma autoridade eleitoral a “encontrar” votos para que ele vença é potencialmente criminoso, e outro flagrante de abuso de poder de um homem corrupto que, se lhe permitissem, se tornaria um déspota. Não permitiremos.
Disputa no Congresso
A falsa narrativa de que uma conspiração o impediu de continuar por mais quatro anos na Casa Branca tem sido a base do discurso político de Trump antes mesmo dos números da apuração confirmarem a vitória de Joe Biden, no dia 7 de novembro.
Além de seus apoiadores, ele conseguiu que parte dos congressistas republicanos abraçasse a ideia.
Na quarta-feira, quando o Congresso se reunirá em sessão conjunta para contar os votos dos delegados aos Colégio Eleitoral e proclamar a vitória de Biden — a última etapa do processo eleitoral antes da posse do democrata no dia 20 de janeiro — 11 senadores do partido, liderados pelo texano Ted Cruz, anunciaram que vão questionar a validade dos resultados em plenário.
A iniciativa é considerada sem chances de sucesso: objeções à proclamação do resultado precisam ser aprovadas separadamente pelas duas Casas do Congresso. A Câmara continuará sob o comando democrata na próxima legislatura, que tomou posse neste domingo, e muitos senadores republicanos reconheceram a vitória de Biden — incluindo o líder da maioria, Mitch McConnell, e o senador pela Carolina do Sul Lindsey Graham. Ambos foram fortes aliados de Trump durante todo o seu mandato.
No entanto, o esforço servirá para constranger Biden e, mais que isso, pôr pressão sobre os republicanos que votarem no Congresso pela confirmação do resultado — na prática, um voto contra Trump. Além disso, ele transformará um ritual político que normalmente passa despercebido em uma sessão conturbada.
Além dos 11, o senador Josh Hawley já havia anunciado que questionaria os resultados.
“Parece ser mais uma manobra política do que um remédio efetivo. Vou escutar atentamente, mas eles têm uma barreira muito alta para superar”, afirmou o senador Lindsey Graham. Neste domingo, quatro senadores republicanos disseram que vão votar pela validação da vitória de Biden.
O cálculo vai além de vencer ou perder. Ao apresentar os questionamentos, os senadores amplificam a alegação de Trump de que Biden venceu graças a uma fraude, o que provavelmente será repetido ao longo de todo o mandato do democrata.
Nesta segunda-feira, Trump fará um discurso na Flórida onde promete falar sobre a suposta conspiração ocorrida para dar a vitória aos democratas. Na quarta-feira, enquanto o Congresso estiver reunido, apoiadores do presidente farão uma manifestação em Washington, um evento que já é visto como potencialmente perigoso pelas autoridades locais.