Eleição invade escolas, vira bate-boca entre crianças e desafio para professores
Professores avaliam que alunos reproduzem o comportamento visto em casa e nas ruas
“O Bolsonaro é ruim porque não quis comprar vacina.” “O Lula foi preso porque roubou.” Frases como essas, que parecem ter saído da boca de adultos debatendo política, têm sido ouvidas dentro de salas de aula de crianças de até 4 anos.
Sempre atentas ao que veem e ouvem em casa e na rua, crianças têm reproduzido na escola embates políticos que se tornaram frequentes no Brasil durante a campanha eleitoral deste ano.
Professores e especialistas relatam surpresa pelo fato de o conflito político ter alcançado crianças tão pequenas, mas também avaliam ser natural que elas se interessem e queiram participar de um debate que está presente em todos os cantos.
Até certo ponto, os conflitos infantis são uma boa oportunidade para explicar na prática às crianças princípios democráticos, como direito à participação política e respeito ao diferente.
Os especialistas, no entanto, dizem que as escolas e as famílias precisam ficar atentas para que as discussões e as angústias da disputa eleitoral não gerem um estresse que as crianças ainda não têm maturidade para assimilar.
Na manhã desta quinta-feira (6), a Folha esteve na Peak School by Colégio Itatiaia, na Bela Vista, região central de São Paulo. Depois do primeiro turno das eleições, a escola registrou alguns atritos entre alunos do segundo ano do ensino fundamental, no qual estudam crianças de 7 anos.
Duas meninas contaram que estavam no recreio cantando uma música a favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quando foram interrompidas por uma colega. A terceira garota disse não gostar do petista porque seus pais afirmaram que teriam sido roubados por ele. Por não concordarem com a acusação, as duas disseram que se afastaram da amiga.
Em outra discussão, presenciada pela Folha, dois meninos da sala discordaram da atuação de Jair Bolsonaro (PL). Um deles argumentou que o presidente não comprou vacina contra a Covid-19 e “deixou queimarem as florestas“. O outro disse que ele cuidava melhor do país por “não roubar dinheiro”.
“As crianças reproduzem o que ouvem em casa, o que os pais defendem. Nós não podemos e nem queremos impedir que elas se manifestem na escola, mas precisamos explicar a elas que se trata de opiniões e valores de cada família”, disse a professora Catarina Prado.
Um dos garotos, por exemplo, contou à Folha que ele e seu pai gostam do presidente Bolsonaro porque ele não obrigou as pessoas a tomarem vacina contra Covid ou a usarem máscara. Nem ele nem seus pais se vacinaram, porque o “presidente não é mandão”.
Ao ouvir a justificativa de preferência do colega, outro menino saiu em defesa da vacina e disse que eles só puderam voltar para a escola porque a população foi imunizada. Ele ainda argumentou que o “presidente não cuida do país e defende a violência e o machismo”.
“As crianças estão expostas a temas muito complexos, como machismo e racismo, e nós precisamos ajudá-los a entender do que se trata. Explicamos de uma forma que seja adequada para a idade, porque elas estão ouvindo sobre isso na televisão, no YouTube, em casa”, afirmou a professora Jerusa Silva.
Há algumas semanas, a escola iniciou uma série de atividades com as crianças dessa faixa etária para explicar o que é a democracia, a república e o processo eleitoral. Como tarefa de casa, pediram aos alunos que conversassem com os pais sobre os valores e visões políticas da família.
“Nós, como educadores, temos o dever de ensiná-los como funciona a nossa sociedade e nosso sistema político. Mas a questão partidária precisa ser trabalhada pela família, porque é algo muito individual. Por isso, fizemos essa proposição para os pais”, afirmou Prado.
A maioria das famílias aproveitou a oportunidade para conversar com os filhos, mas uma mãe questionou a escola por defender que “política não é assunto para criança”.
“Nós explicamos a essa mãe qual era o nosso objetivo com a atividade, explicamos que as crianças têm curiosidade, escutam e reproduzem o discurso na escola. Se a família não tratar sobre isso, elas vão procurar outros espaços para falar “, diz Silva.
Na semana depois do primeiro turno, a escola Tarsila do Amaral, na Água Fria, zona norte da capital, também registrou casos em que alunos de 4 e 5 anos tiveram embates por causa da eleição.
“Uma criança de 4 anos começou a cantar uma música a favor do Bolsonaro e outras crianças passaram a cantar uma do Lula. A professora, ao ver aquela situação, chamou os alunos para uma roda de conversa”, contou Patrícia Bignardi, coordenadora da educação infantil da escola.
“Ela explicou a eles que a escola não é um espaço para esse tipo de atitude. Disse que é como torcer para um time de futebol, que devemos fazer dentro de casa. É uma forma de mostrar a eles quais são os espaços e a forma adequada para esse tipo de manifestação.”
Bignardi também avalia que as crianças não têm compreensão da polarização que tomou conta do país.
“Nós queremos desenvolver cidadãos críticos e participativos, mas também empáticos e respeitosos. É um trabalho que começa cedo, por isso, precisamos agir assim que aparecem as primeiras confusões.”
A pesquisadora Elvira Pimentel, membro do Gepem (Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Moral) da Unicamp, disse que as situações vivenciadas pelas escolas mostram o equívoco que é tratar política como um assunto inapropriado para crianças.
“Crianças são cidadãs, estão inseridas no contexto social da sociedade e não é possível blindá-las. Elas estão vendo essa situação de muita violência e desrespeito, mas o nível de compreensão delas é ainda muito abstrato. Por isso, escolas e famílias precisam ajudá-las a entender o que está acontecendo.”
Para Pimentel, uma forma de fazê-las compreender as eleições e discordâncias é promover espaços em que possam opinar sobre temas de seu interesse. Por exemplo, fazer assembleias em que elas decidam qual brincadeira vão fazer no recreio ou uma votação sobre qual livro vão ler em sala de aula.
“Assim, elas se familiarizam com a ideia de escolha, entendem que é preciso aceitar a decisão da maioria e as opiniões divergentes das suas. É o que falta a muitos adultos neste momento”, avaliou.
Ela também destacou que os pais precisam estar atentos à forma como manifestam suas angústias e medos perto dos filhos. Ainda que a violência e a intolerância preocupem as famílias, a especialista disse que esse temor pode não ser bem assimilado por crianças pequenas e gerar estresse e ansiedade.
Nas conversas que a reportagem teve com crianças, um menino de 7 anos relatou que não teria acompanhado os pais na votação do último domingo (2) porque “bolsonaristas estão batendo em quem vota no PT”. Outro disse torcer pela vitória de Bolsonaro, porque o “Lula vai roubar as casas” se for eleito.
“As famílias estão com dificuldade de lidar com esse sentimento de medo, mas precisam tomar cuidado com a forma como comunicam isso às crianças. Para elas, tudo que está acontecendo ainda é muito abstrato e pode se transformar num terror, em uma ansiedade que não conseguem assimilar”, disse Pimentel.