Em 3 anos, mãe perdeu três filhos em ações policiais
Desde a morte do primeiro, em 2017, Cícera Ivanilda está desempregada e acumulam contas sem pagar
Num barraco de madeira da Costeira, bairro favelizado no sul da Ilha de Florianópolis (SC), Cícera Ivanilda Gonçalves Gregório, 43, aponta o dedo muito magro e comprido para a fotografia em sua mão. Nela, um casal parece vestido para um evento social. Desfila elogios à mulher da imagem. “Ela era foda.” “Ela era esperta.” “Ela, sim, era mãe.” “Era uma águia, muito maravilhosa.” Ela é a própria Cícera, anos atrás.
Uma de suas filhas, Inael Mirele Gregório dos Santos, 22, permanece de pé ao lado da mãe, também analisando a fotografia. “Era muito braba, não deixava ninguém sair da linha. Pegava nós tudo pela mão e saía para resolver as coisas no centro. Era tão rápida que parecíamos uns patinhos com a mamãe pato”, conta a jovem, rindo, enquanto observa, na cama, a mãe de olhos perdidos, hálito que reacende a álcool e cabelo bagunçado. Cícera não está bem.
Já faz tempo que Cícera não é mais aquela mulher da foto. Antes, chegara a trabalhar como supervisora regional dos Correios. Pagava um aluguel relativamente caro para morar numa casa decente e de fácil acesso, longe das vielas do morro e da insegurança do barraco. Ela e o marido, Adriano Lima dos Santos, tinham carro e moto. Foram donos de pizzarias e de dois alvarás de táxi. Viviam com muito conforto, mesmo tendo de sustentar oito filhos.
Mas isso tudo foi antes de 2017, antes de o primeiro de três filhos ser assassinado. A suspeita é que ele tenha sido executado por integrantes do 4º Batalhão da Polícia Militar de Santa Catarina, ao invés de morto em confronto, como é a versão oficial. Desde então, ela parou no tempo, e o marido parou junto. Ele diminuiu o ritmo no trabalho, ela largou o emprego; juntos perderam dinheiro e acumularam contas que não conseguiam pagar. Quando menos perceberam, saíram da casa de classe média no pé do morro para o barraco de madeira do pai de Cícera, Pedro Gregório, 68, homem conhecido por construir casas e barracos para qualquer um dos 36 filhos que pedisse. As condições mudaram para eles e para os sete filhos vivos, que ainda moravam com os pais.
“Eu olho para isso daqui [o barraco] e não aceito que tô aqui”, diz Cícera, com olhos marejados. A cada filho que se vai, é uma dose nova de remédio para Cícera manejar. Antidepressivos, reguladores de humor, remédios para o sono, anticonvulsivos. No total, oito pílulas diferentes combinadas de dia e repetidas à noite.
Cícera foi diagnosticada com depressão e alcoolismo no começo de 2018. Ela não pode tomar banho sozinha. Inael e sua irmã mais nova, Brenda Gregório dos Santos, 15, trocam turnos em auxiliá-la no chuveiro. Antes desse esquema, foram pelo menos quatro tentativas de suicídio por medicamento e duas internações em hospital psiquiátrico, uma por abuso de álcool, outra por depressão profunda. Perguntada se as filhas tinham razão em se preocupar, Cícera, com um sorriso vazio, respondeu que sim.
Apesar de ser muito sincera quanto aos impulsos, Cícera estava num humor pior que nos outros encontros com a reportagem de TAB. Dois dias antes, a reportagem a acompanhou na Delegacia de Homicídios, no Centro de Florianópolis, e lá, junto de três filhas, Cícera parecia forte o suficiente para discutir com Ênio de Oliveira Matos, o delegado titular, por quase uma hora. “Ele é muito grosso”, reclamou, ressentida e acuada, logo após descer os três lances de escada que se conectam à sala do delegado.
Kit rajada no chão
No dia da visita da reportagem, Cícera estava especialmente abalada porque seis dias antes, em 12 de novembro, seu filho mais novo, Adriano Lima Gregório dos Santos, ou Naninho, de 12 anos, foi assassinado. Estava numa escadaria a pouco mais de um quilômetro de casa, à meia-noite, quando levou um tiro no rosto durante um tiroteio. Quando o corpo foi encontrado, havia uma Glock .45 com “kit rajada” largada logo à frente. Moradores da região do confronto afirmam que a arma foi plantada; a polícia defende que ele participou da troca de tiros. “A pistola estava ao lado dele”, afirmou ao TAB o delegado Matos.
Vizinhos, amigos e familiares respondem que Naninho não era nem nunca foi criminoso. “Ele cresceu no meio, né. Não era envolvido, mas qualquer um que cresce no meio tá sabendo”, explica Thayna Silveira, 21, amiga da família.
Sempre que se fala da morte do garoto, compara-se a dos dois irmãos. Um deles chegou a ser traficante de drogas; o outro passou um ano tentando fugir da vida no tráfico. O primeiro a morrer foi Hudson Gregório dos Santos, ou Rack. Tinha 17 anos e comandava o tráfico da Costeira quando foi baleado no que a polícia chama de troca de tiros e a família aponta como queima de arquivo.
Rack entrou para o crime aos 13, mas escondeu da família o máximo que pode. Tinha um desempenho escolar impecável e era uma criança sociável, embora reclusa. Cícera e o marido, na época, eram donos de um disk-pizza — viviam bem. A família desconhece o que motivou Rack a virar criminoso. Cícera só descobriu dois anos depois. O filho fora buscado por uma Ecosport preta para passar um fim de semana em Curitiba (PR).
“Aonde tu vai, filho?”
“Passear com uns amigos.”
Naquele fim de semana, Inael apareceu para contar que Rack fora baleado num assalto a carro forte da Brinks, no município de Araucária, no Paraná. Ela vira a notícia, conversou com o pai e então decidiu abordar a mãe. Dirigiram até o estado vizinho, onde Rack se encontrava convalescendo do pós-cirúrgico. Foi ali, na maca, que ele contou tudo à família. Depois que entendeu que era um caminho sem volta, Cícera respondeu: “Meu filho, já que você virou traficante, seja o melhor”.
Rack ficou detido por um ano. Quando voltou às ruas, foi para uma casa própria. Viver com a família era perigoso. Em poucos meses, ascendeu a chefe da região. A polícia passou a perseguir seus familiares, mas já não havia o que fazer.
Rack, importante demais para sair do negócio, foi morto dia 18 de dezembro de 2017 com múltiplos tiros no peito.
O assassinato acabou jogando pressão no irmão mais novo, Anderson Antonio Gregório dos Santos, ou Biro, que ouvia: “Você é irmão do Rack. Você tem que seguir o caminho, tem que mostrar quem manda”. A família tentava impedir o acesso do jovem ao mundo do tráfico, mas foi inútil. Biro se tornou uma espécie de faz-tudo do tráfico por um breve período. “Ele não queria fazer isso, mas se sentia pressionado. Vivia tentando sair”, conta Inael.
Quase um ano depois, com muito esforço, Biro desocupou da função e se viu livre. Em 4 de abril de 2019, quando já podia voltar a viver normalmente, foi baleado, no que a polícia novamente afirma ter sido uma troca de tiros; a família fala em execução. Tinha 15 anos de idade. Com medo de que o mesmo acontecesse com Naninho, o mais novo, Cícera e o marido chegaram a conversar com os traficantes, pedindo para que não o envolvessem com os esquemas do grupo. Os vizinhos estavam todos avisados e podiam agir, caso vissem algo errado.
Cícera e Inael contam que membros do 4º BPM já invadiram sua casa para fazer batidas surpresa. Numa delas, após a varredura, um dos policiais teria dito: “Achei que os pais do Biro e do Rack teriam mais [fez com os dedos o gesto para dinheiro]”. Noutra situação, um policial teria tirado a balaclava, mostrado o rosto para Naninho e dito algo como: “Olha bem pro meu rosto. Nós vamos fazer contigo o que fizemos com teu irmão”.
Tragédias sucessivas
Cícera trocou o próprio quarto pela sala de estar porque Naninho vivia em sua cama. Tem medo de descer para o banheiro porque fica de frente para o quarto de Naninho. Chora ao ver os remédios porque quem lhe dava as pílulas era o filho morto. Pede para a amiga Silviane Lopes da Silva, 37, ajudá-la nos trâmites jurídicos da morte do filho, porque não consegue mais fazer nada sozinha — era ele que a ajudava a enfrentar a dor das duas perdas.
Não bastasse o triplo luto que a deixa acamada, Cícera ainda tem de lidar com a ausência do marido, Adriano, que trabalha como motorista de Uber. Há pouco mais de cinco meses, segundo a família, ele foi preso injustamente. O que teria acontecido é que um cliente entrou em seu carro com uma mochila cheia de drogas, fato até então desconhecido por Adriano, e ambos foram presos quando parados por uma blitz. O rapaz teria confirmado a versão de que o motorista nada tinha a ver com a ação, mas mesmo assim houve prisão.
Se em todas as perdas Cícera teve Adriano para dividir a dor, agora, mesmo com filhos e amigos por perto, sente-se sozinha. Ela mora há 20 anos na Costeira, mas, assim que Adriano for solto, deve se mudar para São José ou Palhoça. A vida no morro só lhe traz a ideia de morte.