‘Estou à base de remédio’, diz pai de menina de 6 anos que morreu após agressões
A mãe e a madrasta são suspeitas de torturá-la e estão presas preventivamente.
Aguardando a liberação do corpo da filha de seis anos na porta da polícia técnico-científica de Resende, no interior do Rio de Janeiro, o autônomo Roger Fabrizius, 32, diz estar falando calmamente porque está “à base de remédios”. “Estou arrasado, com o nervo à flor da pele, tentando deixar a ficha cair”, diz.
Roger vai enterrar às 14h30 deste domingo (25) em Japeri, na região metropolitana carioca, a menina Ketelen Vitória Oliveira da Rocha, que morreu neste sábado (24) depois de cinco dias em coma, após sofrer agressões. A mãe e a madrasta são suspeitas de torturá-la e estão presas preventivamente.
Gilmara Oliveira de Farias, 28, e a companheira, Brena Luane Barbosa Nunes, 25, moravam juntas desde julho do ano passado no município vizinho Porto Real e, segundo a polícia, confessaram o crime. A mãe de Brena, Rosangela Nunes, 50, confirmou à Folha que a criança vivia uma rotina de violência e privações na casa.
Roger ficou sabendo que Ketelen havia sido internada no dia seguinte, na terça-feira (20), por intermédio de parentes nas redes sociais. Chegou a ver a filha intubada, em situação “muito crítica, mas estável” em um hospital particular em Resende.
Dias depois, porém, o quadro da criança evoluiu com a deterioração das funções vitais, hipotermia e hipotensão arterial. Sofreu uma parada cardiorrespiratória, não respondeu a manobras de reanimação e, às 3h30 deste sábado, não resistiu.
Ele conta que não via Ketelen há mais de um ano e que perdeu contato com a ex-mulher, mas descreve a menina como alegre, viva e amorosa. Demonstrava muito carinho pela irmãzinha que na época ainda estava na barriga, pelos primos e pela tia. “Se a pessoa estava triste, ela fazia ficar alegre”, lembra ele.
“Fui morar em Japeri e a Ketelen ficou morando com a mãe em Duque de Caxias. Ficava 15 dias comigo, de mês em mês. A última vez que vi minha filha foi de 2019 para 2020. A minha mãe falou para a Gilmara deixar a Ketelen na casa dela, mas ela não quis, não queria minha filha perto de mim”, disse, sem dar mais detalhes.
O pai afirma que não sabia que Gilmara estava morando em Porto Real com outra pessoa e que, na época em que ela se mudou de Duque de Caxias, achava que ela tinha ido apenas “resolver um problema de aposentadoria”. Ela tem uma deficiência na perna e no olho direitos e não trabalhava.
Questionado, ele diz que já presenciou a mãe dar “três ou quatro chineladas” na filha, mas que nunca viu ela ser “violenta desse jeito”. Hoje, ele vende doces e biscoitos em uma barraca e vive com a mulher e a segunda filha, de dez meses.
Em decisão que manteve Gilmara e Brena na prisão após audiência de custódia na quinta (22), o juiz Marco Aurélio Adania diz que as investigações apontaram contínuas agressões à criança pela mãe e pela madrasta.
“Consta dos autos que a vítima teria sido espancada pela mãe e pela companheira, ora custodiadas, com socos e chutes por diversas vezes, além de ser arremessada contra a parede e contra um barranco de 7 metros de altura e ser chicoteada com um cabo de TV”, diz um trecho da sentença.
Procurada após a morte da menina, a Polícia Civil informou que aguarda o resultado do laudo de necropsia para confirmar a causa da morte e que realizou uma perícia no local das agressões na sexta (23), além de ter ouvido outras testemunhas que confirmaram a prática de tortura.
De acordo com as investigações, as agressões começaram na noite daquela sexta-feira (16) e continuaram até o fim da noite de domingo (18), sendo que o socorro só foi chamado na segunda (19), como foi relatado pela própria mãe da madrasta, Rosangela Nunes, 50, que responde em liberdade por omissão.
Segundo ela, que morava com o casal e com sua mãe acamada de 86 anos, a criança já teve bonecas queimadas, brinquedos quebrados e era impedida de comer. No último fim de semana, foi agredida com pedaços de pau, um cabo de fibra óptica e chegou a ser impedida de ir ao banheiro como castigo por abrir três caixas de leite.
“A mãe dela [Gilmara] deu uma chinelada primeiro na menina, mas depois a Brena [a madrasta] deu chutes, bateu nela com um pau, com um cabo e ainda bateu a cabeça dela na parede. A Gilmara também batia. Quando as duas se trancavam no quarto, eu dava comida escondida para a menina”, contou.
Na segunda-feira, depois das agressões, a menina estava sem reação, segundo Rosangela. Ela ficou mole, sem falar e com o olho meio aberto, então Gilmara pediu socorro ao Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). A mãe disse aos médicos que pedaços de madeira tinham caído na criança.
Rosangela diz não ter denunciado a filha por medo. Ela conta que sempre era agredida por Brena: “[No Ano Novo] ela me bateu com pedaço de pau. Bateu na minha barriga e tive até hemorragia na vagina. Também precisei dar pontos no dedo. Ela também deu socos no rosto da minha mãe de 86 anos. Dizia que, se a polícia aparecesse, mataria a gente”.
A reportagem não conseguiu localizar a defesa das suspeitas. A Defensoria Pública do Rio informou que participou da audiência de custódia do casal, mas, como ainda não há ação penal em curso, o órgão não foi formalmente constituído para o caso.