PANDEMIA

Ex-negacionistas se convertem, aceitam vacina e descartam ‘kit Covid’

“Mas preciso saber se você vai citar o nome da minha mãe, pois agora a…

“Mas preciso saber se você vai citar o nome da minha mãe, pois agora a bonita morre de vergonha”, diz a engenheira Hellen, 33, quando a Folha a procura.

Omitimos seu sobrenome, para que a família não seja identificada, e ela topa contar uma história que vem se reproduzindo num país que neste sábado (19) atingiu meio milhão de vítimas da Covid-19: pessoas que se arrependem de ter um dia negado a vacina ou aderido ao tratamento precoce contra a doença, já fartamente impugnado por estudos científicos sérios. São os ex-negacionistas.

A “bonita” que “morre de vergonha” tomou ivermectina após ser bombardeada por mensagens no WhatsApp sobre um suposto efeito profilático da medicação. “Inclusive uma prima que trabalha em hospital e disse que tava tomando”, conta a filha.

“No grupo da família só se falava nisso, e ela comprou caixas e caixas”, diz a engenheira sobre um dos remédios propagandeados pelo presidente Jair Bolsonaro mesmo sem dados que comprovem qualquer serventia para este coronavírus em particular. “Ela me encheu tanto a paciência que tomei um comprimido. Insistiu muito pra eu tomar a caixa toda. Eu, hein!”

Resultado: com dores no fígado, a mãe de Hellen fez exames de sangue que indicaram alterações nas transaminases TGO e TGP, enzimas que refletem o funcionamento do órgão.

As taxas dela estavam em 63 U/L (TGO) e 67 U/L (TGP). Para uma mulher adulta, uma medida considerada saudável nos dois casos fica entre 10 U/L e 37 U/L.

O uso indiscriminado da ivermectina, um vermífugo usado para combater parasitas, em geral com dose única, chega a levar pessoas para a fila do transplante de fígado.

A mãe de Hellen não conta “de jeito nenhum” quantas doses tomou e, segundo a filha, “tenta colocar a culpa em outras coisas”. Suspeitou até de remédios que ela sempre tomou contra azia e que nunca deram efeito colateral antes. “Ela nunca vai assumir que foi a ivermectina. Chegou até a ir a um médico, que disse ‘por que você tá tomando isso?’, xingou ela.”

Para a psicanalista Vera Iaconelli, doutora em psicologia pela USP e colunista da Folha, “a gente tende a achar que as pessoas se dobram aos fatos, mas na verdade elas usam os fatos conforme seus interesses, e muitas vezes desejos inconscientes”.

Manter-se a salvo da Covid-19 é o que todos querem, mas “as saídas reais sempre têm limites”, daí preferir atalhos mágicos, diz Iaconelli. “Quem não queria ter algo que pudesse tomar, e [o vírus] não ia me pegar?”

Embarelhe isso com a dificuldade de “separar o que é ciência e o que é opinião”, e a mesa está posta para o negacionismo —de certa forma, negar o que não podemos controlar. “É uma atitude de desespero, de resposta à angústia”, afirma a psicanalista.

A lista de arrependidos é quilométrica. O humorista cristão Jonathan Nemer entrou nela na semana passada. Postou um vídeo em que narra como tratou a pandemia com descaso, até a segunda onda chegar em sua cidade, Marília (SP). A mãe dele está há mais de dois meses internada e só recentemente saiu da UTI —era uma das mais velhas lá, com 63 anos, segundo ele.

“Nem quero entrar em discussão de tratamento precoce, vou fazer um vídeo mais pra frente, minha família fez, tomamos tudo o que o pessoal fala, e enfim”, diz Nemer.

Evangélico, ele questiona quem acha que está nas mãos de Deus adoecer e morrer. “Tem que ser prudente, tem que se cuidar, ou é a mesma coisa que dizer, ‘Deus me guarda, se eu morrer é da vontade de Deus. Então anda a pé numa rodovia na contramão de olho fechado.”

Podemos citar políticos como Boris Johnson, 56, premiê que não deu bola para conselhos científicos e resistiu à ideia de impor um confinamento a conterrâneos até a mortalidade disparar no Reino Unido.

Ou falar do guru indiano Baba Ramdev, 55, praticante do negacionismo antes, com sua defesa de que a ioga poderia curar doenças como a Aids. Ele já zombou “tolos procurando cilindros de oxigênio” para compensar a falta de ar provocada pela Covid-19, dizendo que “Deus nos deu oxigênio de graça” para respirar.

Em junho, após reiteradas amostras de escárnio com a comunidade médica, chamou doutores de “anjos de Deus” e garantiu que tomaria a vacina logo.

A texana Heather Simpson, 30, militava contra toda sorte de imunizantes. No Halloween de 2019, fantasiou-se de sarampo, doença que matou mais de 200 mil pessoas em 2019, segundo a Organização Mundial da Saúde.

“Foi a coisa menos assustadora na qual pude pensar”, Simpson se justificou para seus seguidores em redes sociais. Dizia temer mais a segurança de vacinas, inclusive a que protege contra o sarampo.

Em abril, ela vestiu uma camiseta preta onde se lia, em inglês, “me beija que eu tô vacinada” para aceitar a primeira de duas doses do fármaco da Pfizer contra a Covid-19. Na véspera, levou a filha de três anos para se imunizar pela primeira vez, contra a poliomielite.

Explicou-se. Após se deixar levar por uma espiral de fake news, como a de que vacinas causam câncer e autismo, Simpson começou a detectar sandices do movimento. Ativistas que ridicularizavam o uso de máscara na pandemia ajudaram a movê-la para o lado da ciência.

No caso da comerciante Cláudia Cheble, 56, esse empurrão veio pela fé. Ela contraiu Covid numa viagem a Trancoso (BA) com outras 10 pessoas, incluindo suas gêmeas.

Meses depois, Cheble não queria se vacinar por achar que “a própria classe médica é muito dividida” a respeito do tema, embora a ampla maioria recomende a imunização. “Optei por ficar do lado dos médicos conservadores.”

A ficha foi caindo aos poucos. “Cuido do meu pai, que é idoso. Então num domingo na igreja, conversando com o pastor Pedrão, as minhas filhas comentaram com ele que eu não queria tomar. Conversamos, e ele me disse que havia tomado, falou da importância de estar fazendo a minha parte, e racionalizei a questão.”

Líder da Comunidade Batista do Rio, Pedrão cita uma passagem bíblica ao lembrar da operação para dissuadir Cheble: “A boa ovelha ouve a voz do seu pastor”.

Um amigo pastor também teve de convencer uma fiel. Pedrão mostra a mensagem enviada pelo colega: “Uma irmã escreveu: ‘Como você teve coragem? Não tomo [a vacina] nem amarrada’.”

“Tomei a vacina e posso afirmar, maior é o que está em mim e não importa o que entra em meu corpo!!!”, replicou o líder religioso. “Sou templo de Deus e minha sentença é fruto do sangue daquele que morreu na cruz por nós!” A boa ovelha escutou.

O motorista de aplicativo Djalma Leitão, 45, estava cabreiro com o parco tempo de estudo para desenvolver as vacinas disponíveis no mercado. Em geral, demora anos, até décadas, para produzir um imunizante confiável.

Não se sentiu “preparado e tampouco confiante” em oferecer o braço à agulha, conta. O efeito manada ajudou positivamente. “Além do índice de pessoas buscando se vacinar rápido para voltar a ter suas vidas normalizadas, percebo que sem o comprovante da vacina nada mudará.”

Descobrir que pastores que admira também se imunizaram o ajudou a mudar de ideia, diz Leitão, que trabalha fora todo dia e tem um recém-nascido em casa.

A palavra soa pejorativa, claro, mas o negacionismo é mais do que uma patota de gente afundada em teorias conspiratórias. Christian Dunker, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP, o secciona o em quatro grupos.

Tem o negacionismo de natureza delirante, quadro clínico que “no fundo é uma impossibilidade da pessoa em aceitar determinadas ideias porque elas se chocam com um sistema paranoico já estabelecido”.

Outra possibilidade se escora no coletivo: pessoas unidas para repelir o que as desagrada. Seria uma modalidade “de extração meio religiosa”, como fortalecer crenças que negam a morte. Melhor crer que a Covid-19 é uma gripezinha do que uma hecatombe viral.

Há também a negação revanchista, segundo Dunker. “A pessoa sempre se sentiu cancelada, sem oportunidade de se incluir no sistema, e na hora em que pode dizer alguma coisa, ela reage negando a vacina, aquilo que vem como representação da política, das instituições”.

Por último, o negacionismo de alguém que porventura se acha deficitário, “sobretudo diante das transformações que o mundo recente tem trazido”, e trava uma espécie de disputa por reconhecimento. Vai querer que você a convença. “A hora em que você explica —sem insultar—, é possível que aconteça o efeito de gravitação, de deslocamento.”

Até porque o discurso do outro lado seduz. O tal “kit Covid”, por exemplo. A maioria dos que contraírem o vírus e apelarem a ele vai se curar simplesmente porque quase todo mundo que é contaminado se salva.

Não há relação de causa e efeito entre tomar cloroquina e se safar da Covid, mas acreditar nessa possibilidade diminui a sensação de impotência. Na Índia, houve quem recorresse a esterco bovino. No Brasil, falou-se ainda de ozônio retal. A verdade é que os cientistas ainda não têm uma boa estratégia para lidar com os sintomas em fase inicial e continuam a testar alternativas.