Executivo da SinoVac cobrou fim de ataques à China para não atrasar insumos
Carta enviada ao Itamaraty pela embaixada do Brasil no país revela que SinoVac cobrou mudança de postura para relação ‘mais fluida’
Quinze dias após o presidente Jair Bolsonaro fazer novos ataques à China, em maio deste ano, a farmacêutica SinoVac cobrou uma mudança de posicionamento do governo para garantir o envio de insumos ao Instituto Butantan para a produção da vacina CoronaVac. A informação consta em documento sigiloso do Itamaraty enviado à CPI da Covid e obtido pelo GLOBO. O ofício reproduz uma carta enviada pela Embaixada do Brasil em Pequim ao Ministério das Relações Exteriores (MRE) com o relato de uma reunião ocorrida em 19 de maio na capital chinesa entre diplomatas e representantes brasileiros com o presidente da SinoVac, Weidong Yan.
O executivo, segundo o relato oficial, pediu uma mudança no posicionamento político do Brasil para que houvesse uma relação “mais fluida” entre os países e “fez questão de ressaltar a importância do apoio político para a realização das exportações, e mesmo a possibilidade de tratamento preferencial a determinados países”.
Na avaliação de integrantes da CPI da Covid, o material desmonta a tese defendida em depoimento à comissão por ministros como o titular da Saúde, Marcelo Queiroga, e o ex-chanceler Ernesto Araújo, de que as falas do presidente da República não tiveram impacto nas negociações com o país asiático para o fornecimento de imunizantes.
De acordo com o relato da embaixada brasileira, o presidente da SinoVac “disse ainda que, apesar do bom relacionamento da empresa com o Instituto Butantan e do apoio da Chancelaria à cooperação com o Brasil, poderia ser útil que o acordo entre as empresas fosse visto como uma demanda do governo brasileiro”.
O executivo chinês, ainda segundo o documento enviado ao Itamaraty, sugeriu que o Brasil enviasse uma correspondência, “no nível político”, para expressar a expectativa sobre a quantidade de insumos e o cronograma de suprimento de vacinas.
De acordo com o documento, o encontro ocorreu na sede da SinoVac, em Pequim, e contou com a presença de outros diplomatas brasileiros e um representante do governo de São Paulo em Xangai. “O propósito da reunião foi tratar do processo de suprimento das vacinas contra a COVID-19 contratadas pelo Instituto Butantan”, diz o documento.
No início da reunião, segundo o relato enviado ao Itamaraty, representantes brasileiros comentaram que havia frustração do governo Bolsonaro e do Instituto Butantan com a notícia de que seriam enviados apenas 3 mil litros de insumos ao Brasil naquele mês, e não 4 mil, conforme previsto.
Ao ser questionado se a SinoVac conseguiria fornecer o estoque contratado com o Brasil, o presidente da farmacêutica chinesa disse que a empresa tinha dificuldades em atender “toda a demanda”, alegou que há um “processo de alocação da produção para os diversos clientes da empresa” e, logo em seguida, comentou “que seria conveniente, para o processo, que o governo brasileiro buscasse ‘desenvolver uma relação mais fluida e positiva com o governo chinês’.”
Questão de diplomacia
Em certo momento da reunião, de acordo com relato da embaixada de Pequim, o presidente da SinoVac citou como exemplo a Indonésia e o Chile como “reflexo positivo das boas relações” com a China. Dos 12,7 milhões de doses administradas no Chile contra a Covid-19, 90% são do laboratório chinês Sinovac.
“(O presidente da SinoVac) não chegou a afirmar categoricamente que haveria uma ingerência direta do governo na alocação de insumos, mas realçou a importância de um bom diálogo entre Brasília e Pequim. Afirmou que a questão não é meramente comercial, mas também diplomática. Citou, como exemplo, o reflexo positivo das boas relações que a Indonésia e o Chile mantêm com a China sobre o suprimento de vacinas para aqueles países”, diz o relato enviado ao Itamaraty.
Segundo fontes do governo de São Paulo que participaram das conversas, o embaixador do Brasil na China, Paulo Estivallet, esteve na reunião com a SinoVac e se comprometeu a levar adiante no Itamaraty a informação de que a empresa havia se queixado da postura do governo federal em relação à China.
No início de maio, quinze dias antes da reunião do diplomata brasileiro com a SinoVac, o presidente Jair Bolsonaro sugeriu que o novo coronavírus faria parte de uma “guerra química”.
— É um vírus novo, ninguém sabe se nasceu em laboratório ou por algum ser humano ingeriu um animal inadequado. Mas está aí. Os militares sabem que é guerra química, bacteriológica e radiológica. Será que não estamos enfrentando uma nova guerra? — disse o presidente em evento no Palácio do Planalto, em Brasília — Qual o país que mais cresceu seu PIB? Não vou dizer para vocês — afirmou Bolsonaro, sem citar a China diretamente.
Na época, o diretor do Instituto Butantan afirmou que “todas as declarações neste sentido têm repercussão” — Nós já tivemos um grande problema no começo do ano e estamos enfrentando de novo esse problema — afirmou Dimas Covas, em 6 de maio.
“Guerra química”
A declaração de Bolsonaro chegou a ser alvo da CPI da Covid. Senadores questionaram a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e o Itamaraty se a tese do presidente sobre a suposta “guerra química” partiu das instituições. Na ocasião, as duas instituições negaram ter sido fonte da informação. A Abin, no entanto afirmou que a fala de Bolsonaro expressa “duas entre quatro principais hipóteses atualmente existentes sobre a origem do vírus”, sem negá-la inteiramente.
Em depoimento, o ex-chanceler Ernesto Araújo negou declarações antichinesas por parte do governo e disse que “não há nenhum impacto de algo que não existiu” — Eu não entendo nenhuma declaração que eu tenha feito em nenhum momento como antichinesa. Houve determinados momentos em que, como se sabe, por notas oficiais, o Itamaraty, eu tomei a decisão, nós nos queixamos de comportamentos da Embaixada da China ou do Embaixador da China em Brasília, mas não houve nenhuma declaração que se possa qualificar como antichinesa. Portanto… Enfim, não há nenhum impacto de algo que não existiu — respondeu o ex-ministro ao relator Renan Calheiros.
Na primeira participação na CPI, em 6 de maio, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, foi questionado sobre a fala de Bolsonaro da ‘guerra química’. Em resposta, ele disse “desconhecer esses aspectos”, mas garantiu que “a nossa relação com o Embaixador da China é a melhor possível”.— As relações com a China, pelo que eu entendo, são excelentes, inclusive o Brasil e a China são parceiros comerciais muito sólidos, participam de um bloco econômico importante, e a relação com o Embaixador chinês, Senador, tem sido muito boa. Naturalmente que essa é uma relação em que nós dialogamos quase que semanalmente, liderados pelo Ministro das Relações Exteriores — disse Queiroga na ocasião.
— O Presidente da República não fez menção à China. Então, eu espero que essas questões das relações entre Brasil e China continuem de maneira positiva e que nós não tenhamos impacto para o nosso programa de imunização – afirmou Queiroga.
Procurado, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) não respondeu sobre quais foram as medidas tomadas após a reunião com a SinoVac em Pequim.