Exército impede entrada de líder e estudantes indígenas na própria terra deles
A Funai (Fundação Nacional do Índio) diz que a decisão de proibir indígenas não partiu dela
O Exército barrou um líder e cinco estudantes indígenas de entrar em seu próprio território. O caso ocorreu por volta das 16h do último dia 10 na Terra Indígena Alto Rio Negro, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM).
A explicação para esse veto ainda é divergente. A Funai (Fundação Nacional do Índio) diz que a decisão de proibir indígenas não partiu dela -afirma que orientou barrar apenas convidados não indígenas. O Exército, por sua vez, diz que a ordem veio do órgão indigenista.
Da etnia baré e nascida e criada na região, Maria Auxiliadora Cordeiro da Silva, mais conhecida como Maria Baré, fazia parte de uma lista de pessoas sem autorização para entrar na terra indígena.
Os nomes foram enviados ao posto de controle militar localizado na comunidade indígena ilha das Flores, no rio Negro, a cerca de uma hora de barco de São Gabriel.
Maria Baré era uma das convidadas da assembleia da Oibi (Organização Indígena da Bacia do Içana), das etnias baniwa e kuripako. O evento, de quatro dias, celebrou os 25 anos da entidade e incluiu lançamento de um livro.
Junto com ela, foram barrados cinco estudantes indígenas da região. “A minha indignação e repúdio é enquanto indígena”, diz Maria Baré, que tem participado de movimentos indígenas e é consultora da ONG FAS (Fundação Amazonas Sustentável). “Qual é a legislação que me impede de entrar no meu próprio território?”
Na lista, obtida pela Folha de S.Paulo, constam três líderes da própria etnia baniwa, Marivelton Baré, presidente da Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), a mais importante associação da região, e até um servidor indígena da Funai.
Ao lado dos nomes escritos à mão também lê-se: “Não estão autorizados a pisar em terras indígenas sem autorização da Funai”.
Marivelton Baré e as lideranças baniwas só não foram barrados porque a lista chegou à base da ilha das Flores depois que eles já haviam passado pelo local, dois dias antes.
“Estamos esperando um pedido de desculpas por parte da Funai e que nunca mais se repita essa atitude de fazer uso ilegal da autoridade militar para impedir nosso acesso e dos nossos parceiros às nossas comunidades”, afirma Marivelton.
“O que me deixa mais indignado é ter os próprios baniwas na lista dos proibidos”, afirma André Baniwa, vice-presidente da Oibi. “Agiram pra querer nos tutelar na prática, e não somos mais tutelados.”
Entre os nomes de não indígenas da lista estão colaboradores da Oibi em projetos comunitários. Há pesquisadores do Museu Paraense Emilio Goeldi e de universidades e integrantes da ONG ISA (Instituto Socioambiental).
Para a liderança baniwa, o Exército, por outro lado, tolera a entrada de empresários interessados na mineração -prática proibida em terras indígenas.
“Tem muita coisa errada acontecendo no Alto Rio Negro. O Ministério da Defesa fica dando aval pra empresários, dá apoio com pelotões, mas foram autorizados pela Funai? Não, estão completamente errados.”
André Baniwa, 48, afirma ainda que o caso é inédito na história da Oibi e que já protocolou uma reclamação sobre o ocorrido na Funai. Na sua avaliação, o pano de fundo é a perseguição do governo federal contra a Foirn, da qual a Oibi faz parte, e o ISA (Instituto Socioambiental), que desenvolve produção de pimenta indígena, entre outros projetos.
Tramitação André Baniwa afirma que a origem da lista é a própria Oibi, que enviou para a Funai o nome das pessoas convidadas para a assembleia. “Não era um pedido de autorização, mas apenas uma formalidade, para dar conhecimento. Eles pegaram a mesma lista e passaram esses nomes pelo rádio ao posto de fiscalização.”
À Folha o coordenador regional da Funai no Alto Rio Negro, Jackson Duarte, negou que o órgão tenha dado ordem para barrar indígenas, mas disse que os não indígenas convidados pela Oibi precisavam de autorização prévia da fundação.
Duarte afirmou que Maria Baré foi barrada porque estava viajando com cinco não indígenas que descumpriram a instrução normativa 01/1995, que regulamenta a entrada de pesquisadores.
“O indígena tem total autonomia para convidar quem ele quiser, porém a Funai, como atribuição institucional, também tem de saber por que alguém está sendo convidado”, afirma Duarte, um indígena da etnia tucano.
“Isso vinha acontecendo há muito tempo: antropólogos, biólogos entrando sem mais nem menos, e o pessoal vai e some, nunca mais retorna”, diz.
O coordenador afirma que empresários de mineração e a própria empresa estatal CPRM (Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais) também têm sido impedidos de entrar em terras indígenas da região pela Funai, seguindo uma recomendação do Ministério Público Federal.
Em nomeação comemorada pelo lobby da mineração, Duarte está na coordenação regional desde o ano passado, em substituição ao também tucano Domingos Barreto. O ex-funcionário é crítico do assédio de empresários, como o paulista Otávio Lacombe, interessado em explorar minérios raros.
Jackson é irmão de Lucas Duarte, que preside uma cooperativa de garimpeiros indígenas. O coordenador afirma que ele não está envolvido com extração mineral ilegal. “Ele está batalhando na instância maior, mas infelizmente ainda não está [legalizado].”
Sob a coordenação de Jackson, alguns líderes indígenas foram recebidos recentemente no quartel do Exército, com a presença do então secretário da Presidência, general Santos Cruz. Crítica da proposta de abrir áreas indígenas para mineração, que depende de regulamentação do Congresso, a Foirn não foi convidada.
No evento, os líderes receberam réplicas do bastão de comando “como forma de materializar a amizade existente entre o Exército Brasileiro e essas comunidades”, segundo o Comando Militar do Exército (CMA), em Manaus. De acordo com a nota por escrito, foram convidados apenas líderes próximos aos pelotões especiais de fronteira.
Instrução normativa Em nota à Folha, a assessoria de comunicação da Funai afirmou que uma instrução normativa de 1995 regula o processo de autorização para ingresso de pesquisadores a terras indígenas.
O pedido recebido pelo órgão “é encaminhado pelas nossas unidades descentralizadas às próprias comunidades, que de acordo com tempo e metodologia próprias deliberam sobre a pertinência ou não da visita”.
Vencida essa etapa, o pedido segue para aprovação da presidência da Funai. O objetivo, segundo o órgão, é “garantir que, por exemplo, questões de segurança sanitária e de respeito à consulta do interesse dos povos indígenas sejam respeitadas”.
A recomendação é que o pedido seja feito com 90 dias de antecedência. A tramitação do processo varia, mas o órgão afirma que conseguiu reduzir para um prazo inferior a 60 dias.
No caso de São Gabriel, segundo a Funai, a sede do órgão em Brasília “não recebeu qualquer documentação solicitando ingresso que observasse a instrução normativa” e só foi consultada “na manhã do evento, que já acontecia”.
“Nessa situação, infelizmente não houve tempo hábil para proceder com a autorização de ingresso dos pesquisadores”, diz o órgão.
A Funai informou ainda que não saberia dizer a origem da lista de nomes que não poderiam ingressar na aldeia, “visto que não recebemos um processo com os nomes para análise e, por conseguinte, não poderíamos dizer quem eram as pessoas que não poderiam ingressar”.
O órgão confirmou, contudo, que orientou o Exército a barrar não indígenas.
“Contudo, a Coordenação Regional do Rio Negro recebeu a informação do Exército de que havia não indígenas seguindo em direção à TI ARN ( Terra Indígena Alto Rio Negro). Na ocasião, fomos questionados se havia autorização de ingresso. Como não havia conhecimento de processo de solicitação, em respeito à normativa, foi informado que não. Contudo, em momento algum foi negado o acesso de indígenas por parte da Funai.”
O CMA informou que “a Funai é o órgão competente nacional para autorizar a entrada de pessoas não indígenas em terras indígenas. Dessa forma, o Exército Brasileiro, quando em um ponto de controle, não autoriza a passagem de uma embarcação ou pessoas, está apenas salvaguardando uma determinação de um órgão federal.”
“O Exército Brasileiro esclarece que em nenhum momento impede a entrada de indígenas em terras demarcadas pelo governo federal. Apenas, eventualmente, impede a passagem de não indígenas não autorizados pela Funai de entrarem em terras indígenas como uma forma de cooperação entre agências do governo, como o ocorrido na Ilha das Flores em São Gabriel da Cachoeira”, afirma o CMA.