Fábricas paradas e verbas atrasadas explicam queda na vacinação de crianças
Enquanto o país aguarda uma solução para a covid-19, antigas fábricas de vacinas vão ficar mais tempo de quarentena
Enquanto todos os focos estão voltados para o desenvolvimento de uma vacina contra a covid-19, uma outra questão ligada à imunização põe em risco a saúde do país: a queda histórica no número de crianças brasileiras vacinadas.
Com duas antigas fábricas interditadas, houve redução da produção nacional, o que minou o estoque de doses contra difteria, tétano, coqueluche e tuberculose — vacinas que acumulam hoje as maiores quedas na cobertura vacinal infantil, segundo dados do Programa Nacional de Imunizações (PNI), do Ministério da Saúde.
Em declínio desde 2015, a vacinação infantil teve o pior resultado no ano passado, quando nenhuma meta foi alcançada pela primeira vez em 20 anos. Entre as principais vacinas aplicadas em bebês com até um ano, o menor índice foi o da pentavalente, que chegava a 95% das crianças há cinco anos, mas recuou para 70% em 2019. Essa vacina protege contra difteria, tétano, coqueluche e outras infecções.
A queda foi ainda maior para a primeira dose de DTP (difteria, tétano e coqueluche), que reforça a proteção aos 15 meses de vida. Ela foi aplicada em 86% das crianças, em 2014, mas despencou para 56% no ano passado.
Além de faltar nos postos de saúde em boa parte de 2019, o que essas duas vacinas têm em comum é que elas poderiam ser produzidas no Brasil, caso fosse reformada uma fábrica do Instituto Butantan, em São Paulo. Após dez anos de promessas do governo paulista e do Ministério da Saúde, as obras não começaram. E não há prazo para isso acontecer.
Situação parecida afeta a BCG, aplicada contra tuberculose. Essa vacina costuma registrar os melhores índices de cobertura do calendário infantil, mas recuou nos últimos cinco anos, quando a produção nacional caiu e os problemas de estoque apareceram. Em 2014, a aplicação ficou acima da previsão do governo, mas caiu para 85% em 2019.
Os tropeços da BCG
A BCG é fabricada há 90 anos no Brasil pela Fundação Ataulpho de Paiva, entidade privada sem fins lucrativos, no Rio de Janeiro. Operando com parte do maquinário da década de 1970, a linha de produção foi paralisada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) ao menos três vezes desde 2017, segundo a fundação, por não atender a normas de fabricação. A última interdição durou um ano e meio, e a produção só foi retomada em julho passado.
As obras da nova fábrica começaram em 1989, porém, mais de 30 anos depois, ainda não terminaram por mudanças no projeto e falta de recursos. Além de afetar os estoques da vacina, a baixa produção de BCG deixou pacientes com câncer sem tratamento em 2019, segundo a BBC Brasil.
Com as fábricas obsoletas e reformas que não saem do papel, o país vem recorrendo à importação dos imunizantes. A estratégia se explica, em parte, pelo fato de vacinas como a DTP e a BCG custarem menos de R$ 1 a dose no mercado internacional: é mais barato comprar de fora do que produzir no Brasil.
Mas a economia pode sair caro, porque há poucas empresas no mundo interessadas em fabricá-las, devido à baixa lucratividade. “Os grandes laboratórios estão abandonando as linhas de produção para vacinas de retorno baixo e se concentrando naquelas de maior lucro. E aí faltam vacinas no mercado”, diz Artur Couto, presidente da associação nacional dos laboratórios públicos (Alfob).
Média de cobertura vacinal no Brasil
Brasil: mercado de 300 milhões de doses por ano
Com a escassez de fabricantes, fica mais difícil resolver problemas de abastecimento. Foi o que aconteceu em 2019 com a pentavalente. Cerca de 3 milhões de doses importadas foram descartadas por estarem com defeito. A reposição não foi imediata, e só foi regularizada em meados deste ano.
“O primeiro gargalo é que o mundo está consumindo mais vacinas, como os países asiáticos e africanos, mas o mercado mundial não está preparado para abastecer. O segundo é o problema de qualidade. Quando o governo recusa um lote, é difícil encontrar outro. Não há vacinas sobrando no mercado.”
Renato Kfouri, infectologista da Sociedade Brasileira de Pediatria
“A falta de vacinas é uma crise no mundo todo, mesmo na rede privada”, completa a médica Eliane de Oliveira Morais, do Centro de Referência de Imunização do Hospital de Clínicas da Unicamp.
Os especialistas destacam ainda que fornecer imunizantes ao Brasil é um desafio para qualquer gestor, em razão do tamanho da população e da ampla oferta de soros e vacinas: são 300 milhões de doses por ano. “O nosso programa de imunização é um dos melhores do mundo, com cobertura ampla. O volume de compras é muito grande. Mesmo se produzir no Brasil, continuaremos dependendo de produtos importados”, diz Morais.
Dados obtidos pela Repórter Brasil junto ao Ministério da Saúde e por meio da Lei de Acesso à Informação revelam dependência crescente das importações. Entre 2014 e 2019, a compra de ampolas estrangeiras para a vacinação infantil passou de 33% para 47% do total, em número de doses. O levantamento considera 12 das 13 vacinas indicadas para crianças com até 15 meses (com exceção da de febre amarela).
Butantan estuda reativar produção de DTP em nova fábrica
A fábrica de DTP do Butantan continua sem investimento, há 10 anos, por causa da baixa lucratividade da vacina e do alto custo das obras. “Se a produção ficar abaixo de 50 milhões de doses por ano, essa fábrica dá prejuízo”, diz o imunologista Jorge Kalil, diretor do laboratório entre 2011 e 2017. O Butantan fabricou a DTP do início dos anos 1990 até 2010.
Desde então foram anunciados três projetos para deslanchar a produção. O primeiro tinha investimento de R$ 40 milhões do Ministério da Saúde e do governo de São Paulo, mas “era inviável”, segundo Kalil. O ex-diretor conta que o instituto operava no vermelho quando assumiu a gestão, e assim decidiu investir a verba em projetos mais rentáveis, como a fábrica da vacina da gripe.
Um novo projeto para a fábrica de DTP foi anunciado em fevereiro de 2017. Orçado em R$ 150 milhões, seria custeado com R$ 54 milhões do governo federal e o restante pelo Butantan. Mas o projeto foi engavetado em duas semanas, após Kalil ser afastado do cargo, acusado pelo governo estadual de “graves problemas de gestão”. O ex-diretor afirma que foi alvo de uma injustiça. “As denúncias não se comprovaram e foram arquivadas”, diz ele. “O Butantan estava indo muito bem. Tinha R$ 1,5 bilhão em caixa e faturamento de R$ 2 bilhões”, completa.
Um novo projeto foi anunciado no ano passado: o Centro de Produção de Vacinas. Orçado em R$ 2,3 bilhões, o centro prevê sete vacinas diferentes, entre elas a de DTP, mas o Butantan ainda busca recursos. O valor da nova fábrica supera o investimento de R$ 1,9 bilhão previsto para a produção da Coronavac, a vacina da covid-19 que será desenvolvida pelo laboratório em parceria com a China.
Ministério tem convênio de R$ 90 milhões com Butantan, mas repassou R$ 36 milhões
O Ministério da Saúde afirmou à Repórter Brasil, por meio de nota, que fechou três convênios com o Instituto Butantan desde 2012, no total de R$ 90 milhões, para reformar diversas linhas de produção de vacinas, incluindo a de DTP. Desse total, R$ 36 milhões foram efetivamente repassados. A pasta afirmou que pretende efetivar a produção da pentavalente no Brasil, mas que o plano depende das reformas no Butantan.
Procurada, a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo não comentou.
O Butantan disse que discute com o Ministério da Saúde o que fazer com os R$ 20 milhões repassados em 2012 para a DTP e que pode até devolver os valores. Outros R$ 54 milhões, que ainda não foram repassados pelo governo federal, têm destinação incerta e estão em discussão. O laboratório afirmou que busca recursos privados para “construção e equipamentos” do Centro de Produção de Vacinas. O instituto não comentou as declarações do ex-diretor.
Já a Fundação Ataulpho de Paiva disse que as fiscalizações e eventuais interdições da Anvisa são procedimento comum da indústria. A produção da BCG na nova fábrica está prevista para 2022.