Furtos de comida e itens de higiene são maioria em mais de 3.000 ações julgadas no STF
Para defensores, casos do chamado princípio de insignificância têm crescido na pandemia
O pedaço de bacon e o creme facial eram os “artigos de luxo” entre os produtos flagrados pelas câmeras de um supermercado de Joinville (SC) com um casal, em maio de 2019. Do estabelecimento, eles tentaram levar ainda um conjunto de roupa infantil, um sabonete, um pacote de macarrão e um chinelo —tudo somava R$ 155,88. Saíram de lá presos em flagrante por furto, sem nada nas mãos, e acabaram condenados a quatro meses de reclusão cada um.
O caso, que há um ano teve a condenação anulada pela ministra Cármen Lúcia, é um dos mais de 3.100 processos envolvendo recursos para aplicação de princípio de insignificância, ou de bagatela, que passaram desde 2010 pelo Supremo Tribunal Federal, de acordo com dados mais recentes contabilizados pela Corte. Atualmente, 20 deles estão em análise.
No STJ (Superior Tribunal de Justiça), de 2008 até o início do mês passado tramitaram 2.255 processos que trataram de princípio da insignificância em casos de furtos.
Não é possível somar as ações protocoladas nas duas Cortes superiores, pois um mesmo processo pode ser julgado nos dois tribunais por causa de recursos.
Segundo o Supremo, são casos em que a lesividade da conduta é mínima e não há dano efetivo ou potencial ao patrimônio da vítima.
O presidente da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), Caio Mendonça Ribeiro Favaretto, afirma que os tribunais superiores têm criado critérios objetivos para que se possa balizar a aplicação dos princípios de insignificância nos casos de pequenos furtos, como se houve ou não emprego de violência, por exemplo.
Para o advogado, essas demandas deveriam ser resolvidas na primeira instância, inclusive para aliviar a máquina judicial.
Mas embora esteja sedimentada desde 2004 pelo STF, a incidência do princípio da insignificância nem sempre é usada em instâncias iniciais, de acordo com a Defensoria Pública de São Paulo. E, por isso, acaba sendo reconhecida apenas após recursos que vão parar em Brasília.
Em sua decisão no caso catarinense, a ministra Cármen Lúcia disse que o STF fixou vetores para a aplicação desse princípio: a mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Na mesma época, em abril do ano passado, a própria ministra já havia absolvido um morador de rua preso pela tentativa de furto de dois sacos de lixo reciclável de uma cooperativa de Ibaté, no interior de São Paulo. Em depoimento à polícia, ele disse que iria vender os recicláveis para comprar comida, segundo o Supremo.
A lista de pequenos furtos que acabam em condenações e chegam às instâncias superiores para aplicação de princípio de insignificância vai, em sua maioria, de panelas a itens de higiene pessoal, como xampu, e comida —de leite a até peças de picanha, principalmente nos processos deferidos mais recentemente.
O desemprego e a crise econômica que atingiram a mesa dos brasileiros, agravados durante a pandemia da Covid-19, têm provocado aumento de casos de crimes famélicos, aqueles motivados pela fome, como furtos de comida. É o que apontam defensores públicos de capitais ouvidos recentemente pela Folha.
O presidente da Comissão da Advocacia Criminal da OAB paulista lembra que situações assim têm proliferado durante a pandemia.
“Isso demonstra um agravamento da miséria social no Brasil, principalmente nos grandes centros urbanos, que tem chegado aos tribunais e sensibilizado julgadores, mesmo em casos de reincidência”, afirma.
No mês passado, a ministra Rosa Weber deferiu pedido da Defensoria Pública de São Paulo contra a condenação da 2 meses de prisão em regime semiaberto de um homem que alegou não ter R$ 50 para pagar um prato de nhoque, um refrigerante e mais uma refeição que pediu para levar para casa. Entre outros, a decisão cita “inexpressividade da lesão jurídica provocada”.
Em outubro de 2020, o então ministro Celso de Mello deferiu um pedido de habeas corpus da Defensoria Pública da União a favor de uma mulher de 19 anos, desempregada, que havia furtado de uma padaria de Minas Gerais duas peças de queijo, que custariam cerca de R$ 40.
No STJ, o ministro Humberto Martins suspendeu no fim de 2021 a condenação de um ano e três meses de cadeia em regime fechado para um homem que havia furtado 24 rolos de papel higiênico no Rio de Janeiro.
Também no Superior Tribunal de Justiça, a sexta turma da Corte determinou o trancamento de uma ação penal aberta pela Justiça de Minas Gerais contra um homem que havia furtado dois steakes de frango de um supermercado, que custavam R$ 2 cada.
No mês passado, a Defensoria Pública de São Paulo conseguiu reverter no STJ a condenação de uma mãe que havia sido condenada a 2 anos e 4 meses de prisão, no regime semiaberto, por ter furtado dois pacotes de fralda e uma lata de leite em pó de uma farmácia de Franca, também no interior de São Paulo. O crime ocorreu em 2018, quando a mulher tinha 22 anos e a filha, 2. No total, os três produtos custariam, na época, R$ 81.
“Apesar de constar que a recorrente possui outras condenações anteriores, entendo que a presente condenação da ré pelo crime de furto, em virtude da subtração de dois pacotes de fraldas e uma lata de leite em pó, avaliados em R$ 81, não seria razoável”, diz trecho da decisão do ministro Antonio Saldanha Palheiro.
Para o defensor público Hamilton Neto Funchal, segundo a Defensoria, não se trata de apenas reconhecer que o valor é baixo. “Mas de compreender que somados valor, recuperação total e pouco tempo de privação da propriedade, a lesão sofrida foi de irrisória monta e, por conseguinte, não possui tipicidade material”, disse.
O próprio STJ, entretanto, já havia negado no ano passado recurso da Defensoria Pública para um caso da mesma mãe, condenada a 2 anos e 8 meses de prisão pelo furto de produtos de higiene de um supermercado. Na justificativa para a negativa do ministro Nefi Cordeiro estava o histórico policial da mulher.
A mãe de Franca, que morou quase dez anos na rua, segundo um de seus processos, segue presa, de acordo com o TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo), por quatro condenações por furtos, que vão desde os produtos de higiene, a celulares, dinheiro e folhas de cheques, e uma outra por roubo, também de telefone celular.
O defensor Funchal diz que a mãe justificou o furto dos pacotes de fralda e da lata de leite em pó porque não tinha condições financeiras para suprir as necessidades básicas da filha. Questionada, a Defensoria não disse com quem está a criança atualmente.
Para o advogado Favaretto, não adotar o princípio de insignificância em alguns casos, mesmo os de reincidência, é uma punição que se aplica duas vezes. “Pelo delito cometido e por criminalizar a condição de pobreza de uma pessoa que se vê obrigada a furtar numa situação de desespero”, afirma.
Segundo o representante da OAB, o Estado deveria acionar uma série de outros recursos, como mecanismos de distribuição de renda e amparo às mães que não conseguem sustentar seus filhos, e não a punição pura e simples.
“O encarceramento vai gerar uma situação de sofrimento muito maior, porque a gente sabe que essa filha não vai ter o amparo necessário com a mãe presa, se é que já não tinha. É um drama concreto”, diz.