O governo do presidente Jair Bolsonaro acumula desde janeiro de 2019 ao menos 13 medidas para dificultar ou sonegar informações do país, segundo levantamento feito pela Folha.
No período, o governo federal tentou mudar duas vezes a Lei de Acesso à Informação (LAI), esconder pesquisas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre drogas e tirar os dados de violência policial do anuário sobre direitos humanos.
A última tentativa foi a de ocultar dados sobre a pandemia do novo coronavírus, que até este domingo (21) havia infectado 1.086.990 pessoas e deixado 50.659 mortos, segundo levantamento feito por consórcio de veículos de imprensa do qual a Folha faz parte.
Em meio à pandemia, o Ministério da Saúde passou a atrasar a divulgação dos dados da doença. O boletim que era divulgado às 19h foi transferido para as 22h. Bolsonaro, a apoiadores, justificou a mudança. “Acabou matéria do Jornal Nacional [da TV Globo]”, disse o presidente.
A pasta também chegou a alterar a forma com que os dados da Covid-19 eram apresentados —sem os números acumulados de casos e mortes, apenas com atualizações diárias. Contudo, após reação da sociedade civil, do Congresso e do Judiciário, o governo recuou.
Apesar das declarações do presidente, oficialmente o governo nega a tentativa de esconder as informações. Em sessão na Câmara, o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, afirmou que o objetivo era promover “mais transparência”.
“Se não informarmos o número de óbitos por dia, o gestor não sabe o que está acontecendo em sua cidade e que medidas deve tomar. E você tem metade do mundo dizendo que queremos esconder óbitos. Pelo amor de Deus! Isso é impossível”, afirmou.
As mudanças propostas pelo Ministério da Saúde sobre os dados da Covid-19 colocaram novamente em xeque a transparência do governo federal —para entidades e especialistas, ela piorou desde a posse de Bolsonaro.
Os dados sobre a divulgação da pandemia estão sendo analisados pela OKBR (Open Knowledge Brasil). A organização mostra que o governo federal está atrás de estados brasileiros na transparência dos dados públicos.
Apesar de ocupar a terceira posição no ranking, a gestão Bolsonaro perde para dez unidades da Federação que dividem os dois primeiros lugares na transparência da Covid-19.
“O governo federal demorou muito para abrir os dados, alguns estados avançaram muito mais rápido. Vimos retrocessos e avanços, as melhorias aconteceram depois de muita demanda e pressão social”, afirma Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da OKBR.
Procurado, o governo não se manifestou.
Essa falta de transparência, segundo especialistas, é visível desde o início do governo. Em janeiro de 2019, um decreto assinado pelo vice-presidente, Hamilton Mourão, alterou regras de aplicação da LAI.
A medida ampliava o grupo de agentes públicos autorizados a colocar informações públicas nos mais altos graus de sigilo: ultrassecreto e secreto.
A tentativa só foi frustrada após o Congresso avisar ao Planalto que derrubaria a medida, causando o primeiro revés legislativo do presidente.
“As ações administrativas do atual governo vêm minando a transparência. A tentativa de mudança de dispositivos da LAI por medidas provisórias é um exemplo claro. Há uma deterioração da transparência de forma ostensiva”, diz Marina Iemini Atoji, gerente de Projetos da Transparência Brasil.
Os casos se multiplicaram também na Esplanada.
Em fevereiro de 2019, o Ministério da Justiça negou um pedido por informação sobre eventual encontro do então titular da pasta, Sergio Moro, com representantes de um fabricante de armas e munições sob o argumento de “direito à privacidade”.
A própria CGU (Controladoria-Geral da União), órgão de controle do governo, impediu a divulgação de relatórios de monitoramento de redes sociais encomendados pela Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social) da Presidência da República.
Em maio deste ano, a Casa Civil se negou a fornecer estudos e relatórios sobre hidroxicloroquina e cloroquina produzidos pelo CCOP (Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19).
A Presidência da República também se recusou a divulgar exames segundo os quais Bolsonaro teve exames com resultado negativo para o novo coronavírus. Eles se tornaram públicos após batalha judicial.
O número de pedidos aceitos por LAI reduziu proporcionalmente em relação ao número de solicitações de 2012 a 2019. No primeiro ano, 84% dos pedidos foram aceitos, em 2019 a porcentagem foi de 72%. Em 2020, até o momento, o governo aceitou 67% dos pedidos.
“Há uma piora bastante preocupante. Já não estava bom, disseram que ia melhorar [a divulgação], e piorou. Se você olhar os números por estatísticas, o quadro se mantém estável. Mas há uma piora significativa na qualidade das respostas. É possível perceber também o aumento da negativa do pedido de acesso sem uma base sólida de contestação”, diz a representante da Transparência Brasil.
Em março, o governo editou a MP 928 que restringia a LAI. Segundo o texto, durante a pandemia —período considerado de calamidade pública—, órgãos federais poderiam ignorar o prazo de 20 dias para dar respostas a pedidos feitos por meio da lei.
Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal derrubou a suspensão do prazo, mas o governo não respeitou integralmente a decisão.
Levantamento da Transparência Brasil mostra que órgãos federais negaram atendimento a pelo menos 24 pedidos de informação no intervalo de um mês, mesmo após a suspensão da MP.
O governo também impôs sigilos a pareceres jurídicos emitidos por todos os ministérios e enviados para orientar a Presidência nos projetos aprovados no Congresso.
A justificativa dada pelo ministro da CGU, Wagner Rosário, foi que “o trabalho não pode ser interrompido para que seja realizada a resposta ao cidadão”.
“Nossas pesquisas têm apontado para uma certa resistência dos órgãos federais em garantir acesso às informações em que existe pouca dúvida de que são públicas”, afirma Bernardo Schwaitzer, pesquisador do Programa de Transparência Pública da FGV.
Além da falta de divulgação, houve a tentativa de desqualificação dos dados públicos por parte do governo federal.
Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, contestaram as informações doInstituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) sobre desmatamento e queimadas no país.
O então diretor do órgão, Ricardo Galvão, foi exonerado após defender a divulgação dos dados.
“Há sempre um movimento de rechaçar a informação que apresenta uma perspectiva crítica, a administração sempre tenta esconder. Como temos uma sociedade muito atenta, esses retrocessos acabam sendo barrados pelo Legislativo, Judiciário”, afirma Campagnucci, da OKBR.
Ela acrescenta que existem diversas formas de acabar com a transparência. Entre elas cita a falta de divulgação dos dados e a redução de investimento para a área como ocorreu com o IBGE.
O órgão anunciou corte no orçamento para a realização do Censo 2020. Isso deve gerar impacto sobre os dados produzidos pela pesquisa e a comparação com edições anteriores.
“Se os dados não são divulgados, como contratações, nomeações, não há como identificar irregularidades, conflitos de interesse, nepotismo e corrupção de forma ampla”, diz Guilherme France, coordenador de Pesquisa da Transparência Internacional.