Governo acelerou canetadas sobre meio ambiente durante a pandemia
Entre março e maio deste ano, o Executivo federal publicou 195 atos no Diário Oficial relacionados ao tema ambiental. Nos mesmos meses de 2019, foram apenas 16 atos publicados
O governo Bolsonaro acelerou a publicação de atos sobre meio ambiente durante os meses de maior crescimento da pandemia da Covid-19 no país.
Levantamento da Folha em parceria com o Instituto Talanoa mostra que, entre março e maio deste ano, o Executivo federal publicou 195 atos no Diário Oficial —entre eles, portarias, instruções normativas, decretos e outras normas — relacionados ao tema ambiental. Nos mesmos meses de 2019, foram apenas 16 atos publicados.
Ou seja, o número de publicações neste ano é 12 vezes maior do que em 2019.
Os atos do Executivo, de forma geral, servem para direcionar o cumprimento das leis e complementar sua aplicação. No entanto, a análise também aponta que uma parte dessas medidas infralegais tentou mudar o entendimento da legislação.
O resultado do levantamento vai ao encontro do que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu na reunião ministerial de 22 de abril, cujo teor veio a público em maio, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
“Precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos neste momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa porque só se fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”, afirmou Salles no encontro.
Entidades ligadas ao meio ambiente e especialistas viram na declaração a confissão de que o ministro buscava, por meio de atos infralegais, desmontar as políticas ambientais previstas por lei —e cuja alteração, portanto, deveria passar pelo Poder Legislativo.
A análise das principais decisões publicadas confirma a direção de desregulamentação. Entre elas, estão decisões que repercutiram na imprensa e foram contestadas pelo Ministério Público Federal e pela Justiça, como a reforma administrativa do ICMBio, órgão responsável pela gestão das unidades de conservação no país.
A reforma exonerou gestores especializados e centralizou a administração das unidades de conservação através de cargos ocupados por militares. A decisão é alvo de inquérito civil público.
Por outro lado, a análise também revela “boiadas” que passaram despercebidas. Um exemplo é a instrução normativa 4/2020 do Ministério do Meio Ambiente (MMA), que regula o pagamento de indenizações no caso de desapropriação de propriedades localizadas no interior de unidades de conservação.
Em artigo que trata da priorização de indenização para populações tradicionais em reservas ambientais, a instrução cria uma brecha que, na prática, facilita a expulsão de índios e quilombolas dessas áreas.
No início de abril, o Ibama passou a flexibilizar o cumprimento de obrigações ambientais de empreendimentos licenciados pelo órgão durante pandemia. A medida foi vista por ambientalistas como um ensaio, que, no dia a dia, adianta parte das flexibilizações defendidas no projeto da lei geral do licenciamento ambiental, que deve ser votado na Câmara neste semestre.
Em outra decisão, publicada em maio pela portaria 432/2020, o ICMBio centraliza a gestão de duas unidades de conservação em Roraima, cancelando a criação de duas bases avançadas do órgão na região, onde há registros recentes de invasão de garimpeiros.
Ainda em maio, o ICMBio publicou um código de ética com regras mais frouxas na relação entre agentes públicos e privados, permitindo que empresas paguem despesas de viagens de servidores.
Duas “boiadas” que vieram a público e contaram com reações expressivas acabaram suspensas. O governo recuou sobre a decisão que anistiava desmatadores da mata atlântica após manifestação do Ministério Público Federal. A medida alterava um entendimento dado por lei federal sobre o bioma.
Outra medida suspensa, dessa vez pela Justiça, foi a transferência do poder de concessão de florestas para o Ministério da Agricultura. A mudança de competência das pastas também está implicada na legislação.
“O Meio Ambiente é o mais difícil de passar qualquer mudança infralegal em termos de instrução normativa e portaria, porque tudo que a gente faz é pau no Judiciário no dia seguinte”, disse Salles naquela reunião ministerial.
As “boiadas” do governo Bolsonaro estão concentradas em decretos e instruções normativas, segundo análise da Talanoa. Ao mesmo tempo, o governo tem dificuldade de fazer andar no Congresso projetos que podem fragilizar a área ambiental.
Considerando apenas esses dispositivos, em 2019 houve duas alterações de normas publicadas entre março e maio, contra 22 neste ano.
Os dados se referem a normas publicadas sobre meio ambiente em todo o Executivo. Entre março e maio deste ano, dos 195 atos sobre meio ambiente, somente 16 vieram do Ministério do Meio Ambiente —que havia publicado apenas dois atos no mesmo período do ano passado.
Os líderes na publicação de atos são os ministérios da Economia e da Agricultura: 50 e 46, respectivamente. Em seguida, quase empatado com a pasta de Salles, vêm os atos do Poder Executivo, como os decretos, que de diversas pastas e assinados pela Presidência da República.
No entanto, o alto número de atos não é necessariamente sinônimo de boiada. “Ato infralegal é como o sangue nas veias da administração pública: quer dizer que ele está ativo e tem transparência”, explica Natalie Unterstell, coordenadora do projeto Política por Inteiro, do Instituto Talanoa, e mestre em administração pública pela Universidade de Harvard (EUA).
Segundo Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama, o fato de atos relacionados a meio ambiente (segundo a metodologia utilizada pela Folha e pelo Talanoa) não estarem concentrados na pasta de Salles pode ser uma forma de ver o processo de esvaziamento pelo qual passa o Ministério do Meio Ambiente desde o início do governo Bolsonaro.
Além disso, o menor número geral de atos em 2019 pode estar relacionado à transição de governo, segundo Araújo. Nos primeiros meses sob Bolsonaro, as esferas dos ministérios foram bastante alteradas, o que, naquele momento, poderia ter limitado o volume de publicações.
Raoni Rajão, pesquisador da UFMG, diz que, independentemente do número global de atos, 2019 também teve ações de desregulação, como o núcleo de conciliação de multas, que, na prática, acabou por tornar mais lento o processo de cobrança das multas.
“Também significa que o governo está ganhando poder sobre a máquina. No ano passado, as decisões foram concentradas em menos atos. Agora, é outro padrão, com muitos atos. Eles facilitam para que a boiada passe despercebida”, avalia Unterstell.
No entanto, a análise do Instituto Talanoa mostra concentração de atos considerados “boiadas”, ou seja, consideradas de maior impacto, na pasta ambiental apesar do baixo número total.
“Enquanto Minas e Energia tem criado e rearranjado estruturas e a Agricultura tem publicado reconhecimentos, alvarás e atos ordinários, os atos do Ministério do Meio Ambiente mudam entendimentos de legislações, trazendo instabilidade e insegurança jurídica”, analisa Unterstell.
O levantamento da Folha e Talanoa foi feito por meio de extrações de dispositivos publicados no Diário Oficial que continham palavras-chave selecionadas. Para o tema meio ambiente, foram consideradas palavras como “extrativismo”, biodegradável” e “carga poluidora”.
A metodologia permite analisar temas mais focados, como as relacionadas apenas às florestas (normas que continham termos como “desmatamento”, “arco de fogo” e “área de preservação permanente”).
Em relação a florestas, o número de atos subiu de 93 para 213, entre março e maio de 2019 e de 2020.
Folha e Talanoa passam a fazer acompanhamento sistemático das publicações do Diário Oficial em relação ao meio ambiente —um monitor interativo será publicado nas próximas semanas, que ficará disponível para os leitores fazerem suas próprias pesquisas.
Encontradas as normas por meio de palavras-chave, uma lista de termos faz com que algumas das normas sejam retiradas da análise, por serem relacionados a outros temas (se a norma contém, por exemplo, a expressão “sustentabilidade financeira”, ela é retirada da análise, por não estar ligada a meio ambiente).
A assessoria de imprensa do Ministério do Meio Ambiente respondeu que não vai comentar, pois o entendimento da pasta desde a divulgação da reunião ministerial “continua o mesmo”. À Folha Salles havia dito que, por “boiada”, referia-se à atualização de normas de todos os ministérios.
Em nota, o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) respondeu que a pasta não identificou aumento de publicação de normas em relação ao ano passado e que elas não configuram flexibilização ou algo do tipo. “Com a reestruturação, o Mapa passa a ter um papel importante no processo de desenvolvimento de uma agricultura, sustentável, eficiente e inclusiva”.