Sem comprovação

Governo atesta eficácia de vermífugo sem mostrar estudo, cientistas criticam

Cientistas criticam governo por atestar eficácia de vermífugo contra Covid-19 sem mostrar estudo

(Foto: Jorge William / Agência O Globo)

Alguns cientistas brasileiros em posições de prestígio manifestaram ceticismo em relação ao anúncio de que o vermífugo nitazoxanida teria demonstrado eficácia no combate ao novo coronavírus. Por não terem ainda apresentado um estudo sobre o teste clínico, o Ministério da Ciência e Tecnologia e o grupo da UFRJ que conduziu o teste clínico vêm enfrentando críticas.

Na última madrugada, o ministro da Ciência, Marcos Pontes, publicou postagens nas redes sociais justificando a decisão de não apresentar artigos científicos e dados detalhados no evento onde foi feito o anúncio.

“Todos os dados e cálculos serão apresentados após a publicação do artigo científico internacional que necessita ser inédito. “Existem centenas de pessoas morrendo diariamente, o que, obviamente, obriga a divulgação da conclusão antes da divulgação dos cálculos”, afirmou Pontes. “Obviamente, a informação é baseada nos números, cálculos estatísticos, etc., já de posse dos pesquisadores.”

A afirmação de que o estudo requer ineditismo, porém, não vai de encontro à política da maior parte das revistas científicas para Covid-19, que tem aberto exceção a esse tipo de regra em virtude da urgência de saúde pública imposta pela pandemia.

Denise Garret, epidemiologista do Instituto Sabin (EUA), cobrou em postagem de mídias sociais que o governo apresente os estudos.

“Apresentação dos resultados antes da publicação (até mesmo reportagens escritas) não tira a originalidade dos resultados. O trabalho continua sendo inédito”, disse a cientista, mostrando como exemplo a política de publicação da revista “Science”, uma das mais disputadas do mundo.

Um número grande de estudos que saem em periódicos de prestígio tem sido divulgado na forma de pré-prints (estudos que ainda não passaram por revisão independente), antes de serem aceitos para publicação formal em periódicos acadêmicos.

O GLOBO tentou contato com a pneumologista Patricia Rocco, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), líder do estudo clínico em questão, para ouvir sua versão sobre os questionamentos. A professora pediu à reportagem que contatasse a assessoria de imprensa da universidade. Esta, por sua vez, afirmou que a cientista não estaria disponível para entrevistas.

Segundo alguns pesquisadores, o anúncio foi marcado pela pressa do governo em anunciar um resultado que subsidie a política de tratamento precoce para a Covid-19, que o Ministério da Saúde defende em contraposição ao que recomendam associações médicas.

“O governo federal acaba de reciclar o discurso do tratamento precoce para Covid-19”, escreveu Daniel Dourado, médico e advogado sanitarista da USP, sobre o anúncio. “O tratamento precoce infelizmente não existe, não foi descoberto. Mas agora estão tentando emplacar a nitazoxanida. De novo, sem apresentar nenhuma comprovação científica de eficácia.”

Na falta de um estudo que possa ser avaliado, alguns cientistas buscaram analisar o documento de registro do teste coordenado pela UFRJ, que foi submetido ao site clinicaltrials.gov dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA. O portal se tornou uma referência mundial para atestar a credibilidade de ensaios clínicos.

No registro feito ali, o trabalho liderado por Rocco, que lista recrutamento de 1.575 voluntários para o teste, declara não buscar medir impacto da droga na mortalidade entre pacientes ou taxa de internação, critérios de desfecho considerados mais objetivos para avaliar se uma droga funciona.

“O desenho do estudo é inadequado para demonstrar eficácia clínica ou impacto sobre a transmissão da Covid-19”, escreveu ao GLOBO o infectologista Mauro Schechter, professor titular da Faculdade de Medicina da UFRJ. “Os desfechos primários são subjetivos (tosse e astenia) ou aferidos pelo participante (febre) e medidos no oitavo dia. Já o desfecho secundário é carga viral. Ou seja, nada que tenha caráter prognóstico estabelecido.”

Na defesa que Pontes buscou fazer nesta terça-feira (20) do anúncio feito sobre a droga, porém, o ministro ainda pareceu sugerir automedicação. “Se contrairem Covid, lembrem-se da conclusão dos estudos apresentada hoje. Isso é o importante”, escreveu.

‘Cozinhando’ dados?

Em artigo para o Instituto Questão de Ciência, o microbiologista Alison Chaves, destrinchou os registros dos testes clínicos da nitazoxina, e criticou a prática dos pesquisadores de não publicaram o protocolo definitivo do estudo antes de ele começar a ser realizado.

“Embora não seja uma garantia de qualidade, essa prática permite que depositemos alguma confiança na integridade do estudo: a publicação prévia impede que o protocolo seja ‘cozinhado’ à medida que os dados aparecem”, diz o cientista.

Ele explica que, como não houve publicação prévia para o trabalho sobre a nitazoxina, não há prova de que os critérios de desfecho do trabalho não tenham sido escolhidos sob medida para mostrar que o remédio teve efeito positivo.

O primeiro registro da fase 2 do estudo que começou no dia 8 de junho só foi realizado um mês depois, em 27 de julho no REBEC (Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos). O segundo registro, feito no clinicaltrials.gov, data de 17 de setembro.

A despeito da desconfiança em relação à maneira com que o teste clínico foi conduzido e anunciado, alguns cientistas condenam críticas feitas antes da publicação do estudo.

Rafael Polidoro, imunologista na Universidade de Indiana (EUA), afirma que o pronunciamento de segunda-feira “tem exageros” e recebeu “atenção desnecessária e talvez mal intencionada”, mas não vê em princípio má conduta dos pesquisadores.

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“Vamos aguardar os dados reais saírem pra poder criticar e/ou se alegrar”, escreveu. “O trabalho em si foi tocado por pesquisadores sérios, em que eu confio e respeito.”

Dados “não reais” foram mostrados durante a apresentação do estudo no ministério. Um vídeo de apresentação do trabalho mostrava um gráfico que na verdade havia sido tirado de um banco de imagens, não do estudo original.

Sobre o episódio, o ministro Pontes respondeu: “O gráfico da apresentação de hoje era meramente ilustrativo”.

O GLOBO apurou que o trabalho científico em si teria sido submetido ao JAMA, a revista da Associação Médica Americana, um periódico relevante no cenário médico. Segundo Schechter, a avaliação do resultado depende muito de quais serão as alegações publicadas no estudo final, quando aceito.

“Se demonstra uma importante redução de carga viral, com significação estatística, e conclui dizendo que isso pode servir de base para futuros estudos para investigar eficácia clinica ou impacto em transmissão, eu, como editor ou revisor, recomendaria a publicação”, escreve. “Mas, se conclui que essa redução justifica seu uso clínico em tratamento precoce, pediria para mudar a conclusão ou rejeitaria o trabalho caso não aceitasse mudar.”