Homem morre de Covid entre duas cidades de SP, e registro gera confusão
Sitiante de 67 anos passava por consultas médicas em Borá, mas morava na divisa com Paraguaçu Paulista
O aposentado José Silso Ferreira, 67, achava vantajoso viver entre duas cidades paulistas. De um lado, tinha a 3 km Borá. De outro, a 13 km, Paraguaçu Paulista.
Ferreira visitava Borá com mais frequência pela proximidade entre o seu sítio e o pequeno município de 838 habitantes —o segundo menos populoso do Brasil.
Entre os boraenses, o aposentado era muito conhecido por vender os deliciosos queijos preparados pela esposa, Aldilei Murilo Ferreira, 58.
Também era lá que ele fazia as compras de supermercado, cumpria as obrigações eleitorais a cada dois anos, frequentava os cultos de sua igreja, recebia o aluguel de uma casa própria e passava pelas consultas médicas periódicas na única UBS (Unidade Básica de Saúde) da cidade.
As idas a Paraguaçu Paulista, mais esporádicas, eram para visitar a filha Cilmara ou buscar algum serviço mais especializado, uma vez que a cidade, de quase 46 mil habitantes, é polo nesta parte do estado de São Paulo.
O aposentado só não esperava que a localização de sua casa se transformaria numa confusão entre as duas cidades-irmãs após perder a vida para o coronavírus.
Há pouco mais de um mês, Borá briga para não contabilizar o óbito de Ferreira nas suas estatísticas epidemiológicas sobre a Covid-19. A negação contra o óbito consta a cada novo boletim. O da última sexta-feira (9) informava que 41 moradores haviam se contaminado pelo coronavírus, mas nenhum havia morrido.
Já o balanço da Secretaria de Saúde do governo de João Doria (PSDB), que congrega informações dos 645 municípios paulistas, indica que Ferreira morreu de Covid em Borá.
Para entender essa história é preciso voltar ao dia em que o aposentado sentiu as manifestações da Covid-19.
A filha Cilmara Aparecida Ferreira, 41, conta que o pai se consultou na UBS de Borá quando passou mal em casa no dia 19 de fevereiro. O aposentado foi orientado pelo médico, na versão da filha, a ficar em casa e ir monitorando os sintomas da doença.
O quadro clínico de Ferreira piorou na madrugada do dia seguinte. Cilmara diz que internou o pai, que sentia muita falta de ar, na Santa Casa de Misericórdia de Paraguaçu Paulista –o único hospital da cidade.
No momento da internação, diz ela, uma funcionária que fazia a ficha de Ferreira perguntou em qual posto de saúde ele era atendido. A filha respondeu: no de Borá.
Dali por diante, toda a documentação do paciente o relacionava a Borá. No dia 21, Ferreira deu entrada já na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) da Santa Casa. No dia 22, uma tomografia constatou os danos causados pelo coronavírus nos pulmões dele.
O quadro clínico se agravou, e o aposentado precisou ser intubado. A batalha pela vida terminou por volta das 15h do dia 27 de fevereiro.
A situação só ganhou outros contornos quando a Secretaria de Saúde do estado de São Paulo confirmou o óbito de Ferreira como pertencente a Borá. “Nós não criamos ou inventamos essa informação”, diz Egydio Tonini Nogueira Neto, o secretário de Saúde de Paraguaçu Paulista.
O secretário também afirma que não tem a intenção de entrar num jogo de empurra de dados de óbitos por Covid-19. “A filha disse na internação que o pai era de Borá e nós, assim, acreditamos”, afirma.
Com 49 óbitos e 2.033 casos confirmados de Covid-19, Paraguaçu Paulista enfrenta a mesma superlotação dos hospitais das grandes cidades. Os únicos dez leitos de UTI para Covid estão ocupados há dias.
“Mas apenas dois pacientes são de Paraguaçu”, afirma Neto, sobre o fato de a cidade estar acostumada a dar assistência a quem é de fora.
O secretário de Paraguaçu Paulista diz também não entender a forma como Borá vem tratando o caso de Ferreira, uma vez que ele tinha uma vida naquela cidade. “Em algum momento, todos os municípios terão óbitos por essa doença. É inevitável”, conta.
Cilmara diz estar chateada com o que ela chama de “descarte de uma história” pelo fato de o pai ter construído a vida em Borá. “E mesmo assim cumprimos o desejo dele: papai foi enterrado em Borá”, diz, chorando, a filha.
“Ele sempre dizia que queria manter uma casa ali dentro de Borá e continuar sendo um eleitor de lá para continuar a usufruir dos serviços da cidade”, conta.
Passado um ano da pandemia, o coronavírus não provocou mortes nas cidades de Fernão, Lucianópolis, Mariápolis e Sagres —elas formam uma pequena população de 10.651 pessoas e somavam 407 casos de Covid-19 até esta sexta.
Apesar de Ferreira ter uma casa alugada em Borá, morava num sítio havia cinco anos na divisa entre as duas cidades, mas do lado de Paraguaçu Paulista, no bairro Campinho, de colonização italiana.
Nesta última quinta-feira (8), um advogado da prefeitura de Borá solicitou à família do aposentado um comprovante de endereço.
Sheila do Prado, que trabalha no setor administrativo do Departamento de Saúde de Borá, confirmou que o idoso era atendido com frequência na UBS local, mas o que vale no registro do óbito, diz ela, “é o endereço onde o paciente residia”.
A Secretaria Estadual de Saúde afirmou, por nota, que o óbito de Ferreira foi notificado por Paraguaçu Paulista, mas contabilizado em Borá, “uma vez que o paciente residia nesta última cidade, à qual está vinculado o seu cartão SUS”.
“O município de Borá entrou em contato com o Grupo de Vigilância Epidemiológica de Assis sobre o caso, e está em curso o processo de investigação pelas equipes técnicas e, se for necessário, ocorrerá atualização”, finaliza a nota.
José Silso Ferreira deixou a mulher, dois filhos, três netos e muitos amigos. Aldilei não suportou morar sozinha no sítio após a morte do marido e alugou uma casa próxima da filha, em Paraguaçu Paulista.